tag:blogger.com,1999:blog-57993270827229208222023-06-20T21:36:27.883-07:00Gerações em diálogoUnknownnoreply@blogger.comBlogger15125tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-14340979553931650152007-07-28T09:56:00.001-07:002007-07-28T10:00:39.082-07:00O caminho para a verdade<span style="LINE-HEIGHT: 180%"><p align="justify">A chuva que caía há dias, parara finalmente nessa tarde. Um suspiro de alívio percorreu a turma toda. Os rapazes sabiam agora que o jogo de futebol, há tanto ansiosamente esperado, poderia ter lugar e já não seria cancelado por causa do mau tempo.<br />— Bom, às três horas no campo de jogos, mas em ponto! — diz Matias para Ricardo, ao irem juntos para casa no fim das aulas.<br />Ricardo abana a cabeça e murmura algo de incompreensível sempre que Matias dá pontapés nas pedras do caminho para ensaiar golos. Tenta acertar num tronco, numa pedra, ou até numa determinada folha de um ramo. Ricardo já não suporta este hábito. É que Matias tem tudo menos boa pontaria.<br />As suas brincadeiras com as pedras já haviam causado aborrecimentos que chegassem. Matias achava que era precisamente por isso que devia treinar mais. Como se dar pontapés a pedras fosse de uma importância vital!<br />Ainda Ricardo não tinha acabado de pensar e já se ouvia o barulho de vidros partidos: a última pedra de Matias tinha voado direitinho à janela da entrada do Sr. Gilberto. Ricardo ficou petrificado a olhar.<br />— O melhor agora é fugir! — ouviu Matias sibilar. E, num pinote, o autor da asneira desapareceu a correr pela rua abaixo.<br />Ricardo ainda estava a olhá-lo, confuso, quando sentiu que alguém o agarrava pela gola e o puxava com força. À sua frente, furioso e ofegante, estava o senhor Gilberto.<br />— Até que enfim que te apanhei, rapazinho! Espera lá, que te vou entregar já ao teu pai, e vais ver o que te vai acontecer!<br />Às três horas em ponto, Matias apareceu no campo de jogos mas, por mais que procurasse Ricardo, não o encontrou.<br />“Afinal sempre o apanharam”, pensou Matias “e, ou assumiu ele a culpa, ou não o deixaram falar. Já é costume. O pai dele, às vezes, é muito severo.”<br />Matias ficou de pé, na tribuna, a olhar para o campo vazio, em baixo. Combinavam quase sempre encontrar-se uma hora antes, para arranjarem um bom lugar. Mas, de um momento para o outro, Matias perdeu o entusiasmo pelo jogo. Pensava no vidro da janela, em Ricardo, e a má consciência atormentava-o. Devagar e de cabeça baixa, abandonou o campo e encaminhou-se, hesitante, para a casa dos pais de Ricardo.<br />Foi o pai em pessoa que lhe abriu a porta. Furioso como estava, nem sequer deixou Matias falar, dizendo-lhe asperamente:<br />— É inútil, rapaz! O Ricardo está fechado no quarto, de castigo a fazer os trabalhos de casa… Ele que te conte tudo na segunda-feira, na escola. Até lá, já só faltam dois dias e meio — e voltou para dentro, fechando a porta com força.<br />Matias voltou a tocar à campainha insistentemente e, desesperado, acabou por bater à porta com os punhos. Não podia aceitar uma injustiça daquelas. Mas nada se ouvia dentro de casa.<br />Os pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça.<br />“Muito bem”, pensava ele, “então vou contar-lhe a verdade pelo telefone. E se ele também não me deixa falar pelo telefone?”<br />De repente, Matias tem uma ideia e volta a correr para casa. A mãe ainda não tinha regressado do trabalho. Procurou papel de carta e um envelope, escreveu a toda a pressa umas linhas no papel e levou a carta à estação dos correios mais próxima. Mostrou ao empregado o dinheiro que lhe sobrava da semanada e perguntou:<br />— Chega para mandar uma carta por correio-expresso para a cidade?<br />— Chega e sobra, rapaz.<br />— E a carta é entregue agora mesmo?<br />O empregado olhou-o sorrindo e respondeu:<br />— Há fogo? Não tenhas medo, que estás com sorte. A carta pode chegar ao destino em meia hora. Ex-cepcio-nal-mente!<br />Matias entregou a carta, feliz.<br />Uma meia hora mais tarde, o pai de Ricardo abria uma carta, entregue por um estafeta motorizado. E, admirado, leu:<br /><br /><em>Caro Sr. Pinto,<br />Venho, por este meio, provar-lhe que a verdade afinal sempre consegue entrar em sua casa. Fui eu que parti o vidro da janela e vou pagá-lo com a minha próxima semanada.<br />Espero pela resposta em frente à sua casa.</em><br /><em><div align="right"><br />Com os meus cumprimentos<br />Matias</em> </div><span style="LINE-HEIGHT: 180%"><p align="justify">A resposta que o pai de Ricardo deu a Matias pesava quase 40 kg e vinha a rir-se. O pai tinha mandado Ricardo. Assim que viu o amigo sentado à espera na soleira da porta, disse-lhe:<br />— Matias, tu és o maior maluco do mundo! O que tu fizeste… bem, nunca hei-de esquecer.<br />— Ora — resmungou Matias — não fales tanto, se não ainda vamos perder a segunda parte do jogo.<br /><br /><br /><div align="right">Eva Rechlin<br /><br /><span style="font-size:85%;">Jutta Modler (org)<br /><em>Brücken Bauen</em><br />Wien, Herder, 1987<br /></span><span style="font-size:78%;">tradução e adaptação<br /></div></span></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-77277334947686649932007-07-28T09:54:00.000-07:002007-07-28T09:55:41.426-07:00O avô Lop<div align="justify"><span style="LINE-HEIGHT: 190%">No fundo da floresta dos sonhos há um grande arbusto. Os ramos entrelaçam-se por cima, formando um guarda-chuva verde e viçoso que protege dos aguaceiros de cristal do início de Abril e de Maio todos os seres que ali vivem. A chuva cai durante uma ou duas horas, e depois os raios dourados do sol, como surgidos do país das fadas, escorrem pelas folhas até chegarem ao chão.<br />Foi aí que, durante toda a vida, brincaram e viveram os coelhos da floresta. Havia coelhos com grandes rabos fofinhos e coelhos quase sem rabo – pequenos, gordos, magros, peludos, e um coelho muito velho chamado avô Lop.<br />O avô Lop era tão velho que há já muito tempo que o pêlo embranquecera. Usava um cachecol à volta do pescoço e andava sempre com um pau torcido que lhe servia de bengala.<br />Todas as tardes, por volta das duas ou três horas, o avô Lop sentava-se no seu tronco preferido a desfrutar do calor do sol. Sentava-se em silêncio até que – sem se aperceber – todos os coelhinhos pequenos se juntavam aos seus pés. Eles bem tentavam ficar calados mas era tão difícil que alguns até tinham de meter as orelhas na boca para não se rir.<br />O avô Lop recostava-se no tronco, olhava à sua volta e começava, numa voz muito suave e baixa:<br />– Em tempos que já lá vão, no país da névoa e das coisas mágicas, havia uma floresta encantada…<br />À medida que ia contando a história, muito devagar, algo de estranho e maravilhoso acontecia. O avô Lop começava a endireitar-se cada vez mais. A luz do sol brilhava nos seus olhos castanhos e cintilava pela floresta, e o seu pêlo reluzia.<br />Os coelhinhos ficavam completamente encantados à medida que ele contava a sua história, porque, de um momento para o outro, o velho avô Lop se transformava no mágico da floresta. Os coelhinhos, tão fascinados pela história, nem davam conta quando ela chegava ao fim. O avô tinha de dizer:<br />– Agora é tempo de irem, coelhinhos.<br />E lá voltavam eles aos saltinhos para a moita da floresta.<br />Mas os coelhos mais velhos foram ficando cada vez mais preocupados com os pequeninos. Certo dia, depois deles terem desaparecido, como era costume, os coelhos mais velhos reuniram-se.<br />– Onde é que eles irão? – perguntavam uns aos outros.<br />– Desaparecem todos os dias à mesma hora.<br />– Aposto que saem para ir ver aquele inútil do avô Lop – disse um deles. – Só sei que não andam a fazer coisa boa!<br />Conversaram algum tempo e decidiram que iam descobrir exactamente o que estava a acontecer, mal os coelhinhos voltassem nessa tarde.<br />À hora do costume, os coelhinhos regressaram e, como combinado, os coelhos mais velhos perguntaram-lhes onde tinham estado.<br />– Bem – disse um – fomos à floresta ver o avô Lop e ele contou-nos uma maravilhosa história mágica da floresta. E quando a contava, aconteceu uma coisa ainda mais mágica e maravilhosa: o avô Lop transformou-se no mago do bosque!<br />– Eu já sabia! – disse, encolerizado, um dos coelhos mais velhos. – Aquele coelho velho só anda a contar mentiras aos miúdos.<br />– Mas é verdade! – disseram os coelhinhos em coro. – Quando ele nos conta histórias, aparecem sempre estrelas e faíscas. É magia!<br />Os coelhos mais velhos saltaram para o lado e falaram em surdina uns com os outros, olhando de vez em quando por cima do ombro. Finalmente, dirigiram-se às crianças e falaram-lhes severamente.<br />– Achamos que vocês estão a mentir porque não existe magia. Por isso vão já para a cama sem jantar e daqui para a frente estão proibidos de tornar a ver esse avô Lop!<br />Com as lágrimas a correrem dos olhos, os coelhinhos arrastaram-se até às suas camas. Tinham o coração pesado e o estômago muito vazio.<br />No dia seguinte, como de costume, o avô Lop sentou-se no seu tronco preferido a apanhar sol e à espera que os coelhinhos aparecessem. Esperou, esperou e deve ter caído no sono porque acordou com um sobressalto quando o sol estava a pôr-se. Para seu espanto, não havia nem coelhinhos nem o que quer que fosse à sua volta.<br />Se calhar esqueceram-se – pensou – mas de certeza que amanhã se vão lembrar – e com isto partiu a coxear em direcção à sua toca na floresta.<br />No dia seguinte, e no outro a seguir, foi um avô Lop entris tecido que esperou e esperou pelas crianças, que nunca mais vinham. Por fim, já desesperado, resolveu ir à grande moita do bosque à procura de algum sinal dos coelhinhos.<br />Ao descer, coxeando, pelo caminho abaixo, encostando-se pesadamente à sua bengala, encontrou um dos coelhos mais velhos.<br />– Bom dia! – disse, curvando-se entorpecido em sinal de respeito. – Ando à procura dos coelhinhos do bosque. Costumava contar-lhes histórias, sabe, mas eles deixaram de vir.<br />– Pois ainda bem! – roncou o coelho grande. – Tudo o que aqueles coelhinhos aprenderam consigo foi a mentir e a contar histórias.<br />O avô Lop ficou chocado.<br />– Mas eu nunca lhes ensinei a mentir – disse. – Só lhes contei as maravilhosas e mágicas histórias do bosque!<br />– Pois já não vai contar mais nenhuma – disse, irritado, o coelho antes de regressar para a moita.<br />Foi um avô Lop muito triste e envelhecido, com uma lágrima a descer-lhe pelas bochechas, que regressou à sua toca na floresta.<br />Sem nada com que ocupar agora os dias, avô Lop vagueava sem destino pela floresta. Ainda chegou a ir uma ou duas vezes à grande moita da floresta mas, assim que aparecia, os coelhos mais velhos mandavam os coelhinhos pequenos para o outro lado.<br />– Vai embora! – gritavam-lhe então. – Não queremos coelhos velhos na nossa moita.<br />E com isto todos os coelhos fugiam precipitadamente para as suas tocas.<br />Completamente sozinho, o avô Lop deixou a moita aos saltinhos e voltou para o seu recanto do bosque.<br />Os coelhinhos bebés fizeram como lhes tinha sido ordenado, mas nunca conseguiram esquecer a magia do mago do bosque. Às vezes, quando estavam todos sozinhos, costumavam segredar o quanto tinha sido divertido, mas a maior parte das vezes arrastavam-se pela moita, levantando a poeira e sentindo-se muito tristes.<br />Os coelhos mais velhos tentavam animá-los, e às vezes até lhes contavam uma história ou outra, mas não era a mesma coisa.<br />As coisas foram piorando tanto que os coelhinhos começaram a discutir entre eles. Tudo começava com um coelho a bater noutro, mas acabava-se sempre num emaranhado de braços, pernas e orelhas a debater-se no chão.<br />A certa altura, como alguns dos coelhos mais velhos já não aguentavam mais, reuniram os coelhinhos todos.<br />– Isto tem de acabar – disseram. – Com estas caretas e disputas já não se consegue fazer mais nada. Já não se vai apanhar comida, já não se constroem novas tocas e o Inverno está a chegar.<br />– Se pudéssemos ouvir as histórias mágicas do avô Lop – disse um dos coelhinhos – já não arranjávamos mais problemas.<br />– Mas a magia não existe! – disseram zangados os coelhos mais velhos. – Vocês mentiram.<br />– Nós não mentimos! Nós dissemos a verdade e se tivessem vindo connosco, teríamos mostrado como a magia existe mesmo.<br />Os coelhos mais velhos pensaram por uns instantes.<br />– Nós vamos com vocês ao vosso mago do bosque – decidiram – só para vos provar que a magia não existe.<br />E lá seguiram todos aos saltinhos para a floresta, pelo longo e sinuoso carreiro abaixo, até chegarem ao tronco onde o avô Lop, esperava. Estava, como sempre, ao sol, a contemplar suavemente o céu. Os coelhinhos sentaram-se rapidamente aos seus pés, enquanto os coelhos mais velhos se sentaram, cépticos, num cepo velho e apodrecido.<br />O avô Lop reclinou-se para trás e, com um brilho nos olhos, começou, numa voz suave e baixa:<br />– Há muito tempo, numa terra de névoa e magia, havia uma floresta encantada…<br />Os coelhos mais velhos arregalaram os olhos com espanto ao verem o avô Lop ficar cada vez mais direito. À medida que ia contando a história, a luz do sol começou a brilhar dos seus olhos castanhos claros, e bolinhas de magia começaram a cintilar pela floresta. À medida que ia contando, o pêlo passou de branco a prateado e ele transformou-se no verdadeiro mago do bosque.<br />Quando a história chegou a um bonito fim, todos os coelhos, novos e velhos, estavam completamente encantados. O momento era tão belo, que alguns dos coelhos mais velhos tinham até lágrimas nos olhos.<br />Ninguém disse uma palavra, tal era o medo de quebrar aquele encanto mágico, mas, um a um, todos se aproximaram do avô Lop para o abraçarem com todo o amor que tinham no coração.<br />Os coelhos mais velhos nunca pediram desculpa pelo mal que tinham cometido em relação aos coelhinhos e ao avô Lop, porque todos sabiam que, às vezes, até os coelhos mais velhos cometem erros. Mas agora, todos os dias, sempre à mesma hora, todos os coelhos saltam da moita e correm para ir ouvir o avô Lop e vê-lo transformar-se no mago do bosque.<br /></span></div><div align="center"><span style="LINE-HEIGHT: 190%">Escutem, dos mais velhos,<br />As suas histórias douradas<br />E lembrem-se do avô Lop<br />E da magia revelada. </span></div><span style="LINE-HEIGHT: 100%"><div align="right"><br /><span style="font-size:85%;">Tradução e adaptação<br />Stephen Cosgrove<br /><em>Grampa-Lop</em><br />Los Angeles, Sloan Publishers, Inc., 1981<br /></span></div></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-56956111099611104892007-07-28T09:52:00.000-07:002007-07-28T09:53:08.606-07:00À beira do lume<div align="justify"><span style="LINE-HEIGHT: 190%"><br />Sossegadas as balbúrdias do dia, já a noite vinha devagarinho deitar pozinhos de sono por aqui e por ali.<br />Sentadas à lareira da velha casa, a avó e a neta começaram a pensar qual havia de ser a última história do dia.<br />— Conte lá a história da Carochinha! — pediu a Mariana.<br />A avó admirou-se:<br />— Outra vez?! Mas tu nunca me deixas acabar como deve ser...<br />— Hoje deixo! — prometeu a menina.<br />E a avó contou a história da Carochinha, como ela é conhecida. Falou da Carochinha à janela, toda contente por ter encontrado uma moeda ao varrer sua casinha:<br />— Quem quer casar com a Carochinha, que é formosa e bonitinha?<br />— “Quero eu, quero eu!” — tinham dito um cão, um gato, um galo, um boi, um burro...<br />Mas a Carochinha não tinha gostado da voz de nenhum deles e todos se tinham ido embora. Até que apareceu um ratinho: “Quero eu, quero eu!”<br />— Oh, como és engraçado! Ora fala um bocadinho, para eu ouvir bem a tua voz!<br />— Chi... Chi... Chi...<br />— Que linda fala! Vamos já casar! Vamos já casar!<br />E assim foi. No dia da boda, já iam a caminho da igreja para o casório, quando a Carochinha deu por falta de uma luva que tinha esquecido na cozinha, ao mexer o panelão que fervia ao lume.<br />— Vou já buscar a luva! — disse o ratinho, muito amável.<br />— Tem cuidado, não te debruces no caldeirão!!! — avisou a noiva.<br />— Bem — continuou a avó — o ratinho foi até à cozinha e...<br />A neta, que ouvia a história com muita atenção, disse de repente: — Mas a porta estava fechada!!!<br />A avó continuou:<br />— Pronto, a porta estava fechada e então o ratinho foi logo a ver da chave...<br />— Mas não a encontrou!!! — disse muito depressa a Mariana.<br />— Bem — continuou a avó — o ratinho então subiu a um postigo de grades que dava para a cozinha, e...<br />— Viu que não cabia por entre as grades!!! — acudiu muito aflita a Mariana.<br />A avó não desistiu:<br />— Bem, então o ratinho, que era muito esperto e queria ir buscar lá dentro da cozinha a luva da Carochinha, pôs-se à procura de um buraco na porta pelo qual entrasse...<br />— Mas não encontrou!!! A porta era nova! — interrompeu a Mariana<br />— Bem, então não pôde ir buscar a luva da Carochinha à cozinha e voltou muito triste para junto da sua noiva, que...<br />— Ó avó, escusa de dizer agora que ela lhe deu a chave da cozinha, porque eu sei que não deu nada!!! — quase gritou a neta.<br />— Por acaso era isso mesmo que eu ia dizer... — riu a avó.<br />E as duas, avó e neta, ali ficaram a rir e a brincar à beira do lume e à beira de uma velha história da Carochinha que a neta não queria, por nada deste mundo, que acabasse…</div><div align="center"><br />com o João Ratão<br />cozido e assado<br />dentro do caldeirão!</div><div align="right"><br /><br /><span style="font-size:85%;">Maria Alberta Menéres<br /><em>Histórias de tempo vai tempo vem</em><br />Porto, Edições Asa, 1988<br /></span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-64935424479945710802007-07-28T09:48:00.000-07:002007-07-28T09:50:54.459-07:00O avô diz sempre a verdade!<span style="LINE-HEIGHT: 190%">O avô está deitado na cama. Morto. Com velas a arder à direita e à esquerda.<br />— E onde é que estão as asas? — pergunta o João.<br />— Chiu! — diz a mãe.<br />— Mas o avô disse-me que, quando morremos, ganhamos asas.<br />— Chiu — repete a mãe.<br />— Ele não tem nenhumas? — pergunta o João cheio de medo. — Ainda lhe vão crescer?<br />— Chiu! – torna a mãe.<br />— Mas o avô disse que já estava feliz por ir voar — disse o João. — Só que sem asas, ele não consegue!<br />A mãe chega-o para si e põe-lhe a mão na boca.<br />— Por favor, está calado.<br />— O melhor é levá-lo lá para fora — diz em voz baixa a tia Mimi. — Está a incomodar.<br />O tio Francisco empurra-o à sua frente para fora da porta.<br />— Mas o avô nunca mentiu — grita o João lá fora.<br />— Agora vais portar-te bem e vais subir para o teu quarto — diz o tio Francisco.<br />João agarra-se com força ao corrimão das escadas.<br />— Se não tem asas, é porque não está morto — diz.<br />— Disso eu não percebo nada — diz o tio Francisco. — Disso nenhum de nós percebe.<br />— Mas o avô percebe! — diz o João — Podes perguntar-lhe!<br />— Está bem — diz o tio. — E agora porta-te bem e vai para o teu quarto.<br />— Vais ver que ele não mente — diz o João.<br />E sobe as escadas calmamente.<br /><div align="right"><br /><br /><br /><span style="font-size:85%;">Lene Mayer-Skumanz (org.)<br /><em>Hoffentlich bald</em><br />Wien, Herder Verlag, 1986<br /><span style="font-size:78%;">Tradução e adaptação</span> </span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-14166455413000901602007-07-28T07:29:00.000-07:002007-07-28T07:34:31.547-07:00O caminho para a verdade<div align="justify"><span style="LINE-HEIGHT: 200%"><br />A chuva que caía há dias, parara finalmente nessa tarde. Um suspiro de alívio percorreu a turma toda. Os rapazes sabiam agora que o jogo de futebol, há tanto ansiosamente esperado, poderia ter lugar e já não seria cancelado por causa do mau tempo.<br />— Bom, às três horas no campo de jogos, mas em ponto! — diz Matias para Ricardo, ao irem juntos para casa no fim das aulas.<br />Ricardo abana a cabeça e murmura algo de incompreensível sempre que Matias dá pontapés nas pedras do caminho para ensaiar golos. Tenta acertar num tronco, numa pedra, ou até numa determinada folha de um ramo. Ricardo já não suporta este hábito. É que Matias tem tudo menos boa pontaria.<br />As suas brincadeiras com as pedras já haviam causado aborrecimentos que chegassem. Matias achava que era precisamente por isso que devia treinar mais. Como se dar pontapés a pedras fosse de uma importância vital!<br />Ainda Ricardo não tinha acabado de pensar e já se ouvia o barulho de vidros partidos: a última pedra de Matias tinha voado direitinho à janela da entrada do Sr. Gilberto. Ricardo ficou petrificado a olhar.<br />— O melhor agora é fugir! — ouviu Matias sibilar. E, num pinote, o autor da asneira desapareceu a correr pela rua abaixo.<br />Ricardo ainda estava a olhá-lo, confuso, quando sentiu que alguém o agarrava pela gola e o puxava com força. À sua frente, furioso e ofegante, estava o senhor Gilberto.<br />— Até que enfim que te apanhei, rapazinho! Espera lá, que te vou entregar já ao teu pai, e vais ver o que te vai acontecer!<br />Às três horas em ponto, Matias apareceu no campo de jogos mas, por mais que procurasse Ricardo, não o encontrou.<br />“Afinal sempre o apanharam”, pensou Matias “e, ou assumiu ele a culpa, ou não o deixaram falar. Já é costume. O pai dele, às vezes, é muito severo.”<br />Matias ficou de pé, na tribuna, a olhar para o campo vazio, em baixo. Combinavam quase sempre encontrar-se uma hora antes, para arranjarem um bom lugar. Mas, de um momento para o outro, Matias perdeu o entusiasmo pelo jogo. Pensava no vidro da janela, em Ricardo, e a má consciência atormentava-o. Devagar e de cabeça baixa, abandonou o campo e encaminhou-se, hesitante, para a casa dos pais de Ricardo.<br />Foi o pai em pessoa que lhe abriu a porta. Furioso como estava, nem sequer deixou Matias falar, dizendo-lhe asperamente:<br />— É inútil, rapaz! O Ricardo está fechado no quarto, de castigo a fazer os trabalhos de casa… Ele que te conte tudo na segunda-feira, na escola. Até lá, já só faltam dois dias e meio — e voltou para dentro, fechando a porta com força.<br />Matias voltou a tocar à campainha insistentemente e, desesperado, acabou por bater à porta com os punhos. Não podia aceitar uma injustiça daquelas. Mas nada se ouvia dentro de casa.<br />Os pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça.<br />“Muito bem”, pensava ele, “então vou contar-lhe a verdade pelo telefone. E se ele também não me deixa falar pelo telefone?”<br />De repente, Matias tem uma ideia e volta a correr para casa. A mãe ainda não tinha regressado do trabalho. Procurou papel de carta e um envelope, escreveu a toda a pressa umas linhas no papel e levou a carta à estação dos correios mais próxima. Mostrou ao empregado o dinheiro que lhe sobrava da semanada e perguntou:<br />— Chega para mandar uma carta por correio-expresso para a cidade?<br />— Chega e sobra, rapaz.<br />— E a carta é entregue agora mesmo?<br />O empregado olhou-o sorrindo e respondeu:<br />— Há fogo? Não tenhas medo, que estás com sorte. A carta pode chegar ao destino em meia hora. Ex-cepcio-nal-mente!<br />Matias entregou a carta, feliz.<br />Uma meia hora mais tarde, o pai de Ricardo abria uma carta, entregue por um estafeta motorizado. E, admirado, leu:<br /><br /><em>Caro Sr. Pinto,<br />Venho, por este meio, provar-lhe que a verdade afinal sempre consegue entrar em sua casa. Fui eu que parti o vidro da janela e vou pagá-lo com a minha próxima semanada.<br />Espero pela resposta em frente à sua casa.</em></div><div align="right"><em><br />Com os meus cumprimentos<br />Matias</em> </div><div align="justify"><br />A resposta que o pai de Ricardo deu a Matias pesava quase 40 kg e vinha a rir-se. O pai tinha mandado Ricardo. Assim que viu o amigo sentado à espera na soleira da porta, disse-lhe:<br />— Matias, tu és o maior maluco do mundo! O que tu fizeste… bem, nunca hei-de esquecer.<br />— Ora — resmungou Matias — não fales tanto, se não ainda vamos perder a segunda parte do jogo.<br /></div><div align="right">Eva Rechlin<br /><br /><span style="font-size:85%;">Jutta Modler (org)<br /><em>Brücken Bauen</em><br />Wien, Herder, 1987<br /><br /></span></div></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-38276834457430042872007-07-28T07:26:00.000-07:002007-07-28T07:27:22.274-07:00Eu, Ming<div align="justify"><span style="LINE-HEIGHT: 190%"><br />Eu poderia ter nascido no Reino de Inglaterra, ter bonitos chapéus, e deixar-me conduzir numa carruagem puxada por dezoito cavalos.<br />Saudaria a multidão com um pequeno gesto da minha mão e sorriria sem razão, pensando na tarte de maçãs que me iriam servir para o chá.<br /><br />Poderia também ter nascido Crocodilo e crescido na margem do Nilfertiti.<br />Teria devorado todos os turistas barrigudos com os seus calções curtos e chapéus, mais as suas máquinas fotográficas, mal eles pousassem um dedo do pé nas margens da minha estância turística.<br /><br />Melhor ainda! Poderia ter sido um Emir Rico!<br />Teria dado a volta ao mundo, em Rolls-Royce num dos sentidos e de bicicleta banhada a ouro no outro.<br />No resto do tempo, teria contado o meu tesouro na erva do meu magnífico jardim mesmo no meio do deserto.<br /><br />Poderia ter sido também uma Horrível Velha Feiticeira.<br />Teria transformado todas as princesinhas em mosquitos com a minha vassoura maléfica. E, troçando delas, metê-las-ia no meu celeiro cheio de aranhas.<br /><br />Poderia até ter nascido Touro. Belo, forte e absolutamente sedutor.<br />Teria feito a corte a todas as vacas dos arredores e tê-las-ia levado em viagem de núpcias a uma China fictícia, umas a seguir às outras.<br /><br />Teria podido tornar-me General-chefe com um quépi coberto de estrelas, com inúmeras condecorações, com mísseis sempre preparados a tempo, e canhões sempre prontos para o que desse e viesse.<br />E, durante as minhas férias, sonharia num tapete de bombas com um exército de soldadinhos de chumbo muito obedientes.<br /><br />Por fim, poderia ter sido Imperador do Mundo.<br />Empoleirado no meu trono, com uma coroa tão alta como a Torre de Babel, tomaria conta de toda a Terra, desde os mais reles pulgões aos mais importantes do planeta, Todos os anos, eu convidaria a Rainha de Inglaterra, o Crocodilo, o Emir Rico, a Horrível Velha Feiticeira, o Touro, o General, etc., para uma grande festa dada no meu palácio.<br />Todos eles aplaudiriam cada palavra do meu discurso.<br /><br />Mas eu sou Ming. Mais ninguém.<br />Vivo no centro da China, nas margens do lago Koukonor.<br />Todos os dias ponho o meu chapéu de bambu entrelaçado e umas calças bem largas. Todos os dias, antes do sol nascer, parto com a minha pequena Nam para a aldeia.<br />Ela pega com a sua mão pequenina na minha mão e saltita todo o caminho fazendo baloiçar as suas tranças.<br /><br />Caminhamos os dois sem nos apressarmos muito. Eu entrego Nam na escola e vou vender os meus coscorões de gengibre ao longo da rua comercial da aldeia.<br />Aqui, toda a gente me conhece. Muitas vezes vou até casa de Liang, que tem uma loja de chás. Somos velhos amigos.<br /><br />Todas as tardes, Nam e eu subimos o caminho que nos conduz a casa.<br />Ela conta-me o seu dia. E canta. E salta ao pé-coxinho.<br />O seu riso ziguezagueia na noite que cai suavemente.<br />É assim a nossa vida.<br />Todos os dias.<br />Mudam apenas a cor dos arrozais e o perfume das caixas de chá.<br /><br />Esta manhã, quando íamos a caminho da escola, encontrámos um sapo quase azul!<br />Eu também podaria ter sido um Sapo quase Azul!<br />E pensei nas Rainhas de Inglaterra, nos Crocodilos, nos Emires Ricos, nas Feiticeiras, nos Touros, nos Generais, nos Imperadores do Mundo e nos Sapos quase Azuis.<br /><br />Neste momento devem estar a dizer para si próprios: «Ah! Se eu tivesse podido nascer Ming! Seguraria a mãozinha de Nam bem fechada na minha e seria o avô mais feliz do mundo.»<br /><br />Enquanto Nam dormia, peguei no seu caderno de escola. Escrevi no fundo da última página, discretamente:<br />P.S. (pequeno segredo): Nam, meu anjo, amo-te muito.<br /><br />E assinei com letras muito pequenas:<br />eu, Ming.<br /> </div><div align="justify"> </div><div align="justify"> </div><br /><div align="right"><span style="font-size:85%;">Clotilde Bernos; Nathalie Novi<br /><em>Eu, Ming</em><br />Porto, Ambar, 2007</span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-56842901107431007342007-07-28T06:11:00.000-07:002007-07-28T06:13:19.178-07:00O meu paizinho de nada<div align="justify"><br /><span style="LINE-HEIGHT: 190%">Durante muito tempo, acreditei que não tinha pai. Era o que os outros diziam:<br />— Tu nem sequer tens pai.<br />Não valia a pena dizerem-mo, eu bem via que não.<br />Não tinha pai para me encher a bola esvaziada, não tinha pai para me vir buscar à escola ao sábado, não tinha pai para meter medo a quem se metesse comigo, não tinha pai para ver como eu era campeão de corrida, não tinha pai para me levar às cavalitas quando eu estava cansadíssimo.<br />Então, um dia, perguntei à minha mãe:<br />— Porque é que eu nunca tive pai?<br />— Tiveste um — disse-me a mãe. — Tiveste um pai como toda a gente; teve de ser... Chamava-se Luís e parecia-se com… sei lá…. Olha, com um bago seco, pronto. Mas deixa-me em paz… Prefiro não falar disso.<br />— Mas porque é que agora já não tenho? Morreu?<br />— Para mim — disse a minha mãe — é como se estivesse morto e enterrado. Deixa-me em paz, já te disse.<br />Quer dizer que eu tinha tido um pai, como toda a gente. Mas não vou tê-lo mais. Morto e enterrado. Que pena. Se calhar foi para a guerra e morreu lá. Guerras que fazem morrer os papás são coisas que acontecem todos os dias. Perguntei à minha mãe se tinha uma fotografia dele e ela respondeu.<br />— Isso ia pôr-me mal-disposta.<br />Por isso não voltei a perguntar-lhe mais nada.<br />Na escola, contei que o meu pai estava morto e enterrado. Os outros não acreditaram:<br />— Não é verdade. Quem morre são os avós, não são os pais. Os pais nunca morrem.<br />— E morrem! — disse eu. — Morrem na guerra.<br />— Ah! Ah! Ah! Na França nem sequer há guerra — disseram eles. — Isso da guerra era no tempo dos avós, portanto estás a ver! Não pode ser, o teu pai não pode ter morrido na guerra. Ou, então, o teu pai morreu quando era pequeno!<br />— Foi isso — disse eu, para me deixarem em paz. — Morreu quando éramos os dois pequenos.<br />Mas, mesmo assim, enervava-me um bocado não saber ao certo. Perguntei então à minha avó, que toma conta de mim quando a mãe não pode.<br />— O pai morreu quando era pequeno?<br />A minha avó até caiu para trás, de tanto rir.<br />— Tu tens cada uma!<br />E chamou o avô para lhe contar.<br />— Sabes a última? — perguntou ela a rir. — O miúdo perguntou-me: O meu pai morreu quando era pequeno?<br />O avô não se riu. Ele, também, nunca se ri. Encolheu os ombros e mais nada. Aproveitou para beber um copo, já que o tinham chamado à cozinha, e voltou ao trabalho.<br />A avó disse-me:<br />— Não se sabe se morreu, mas, para mim, é como se tivesse…<br />— A mãe também diz que é como se tivesse…<br />— É o melhor que ela faz — replicou a avó. — O teu pai era um senhor pequenino, um maltrapilho, um Zé-Ninguém, menos do que nada, pronto. Desapareceu e ainda bem!<br />Foi o que a avó disse.<br />E, depois, não disse mais nada, porque ela comigo só diz blá, blá, blá, embora muitas vezes eu até a faça rir.<br />Sentia-me muito contente por ter tido um pai, mesmo que tenha sido um senhor muito pequenino, um homem de nada. E depois também fiquei contente por saber que não tinha morrido em pequeno, porque isso teria sido ainda mais injusto, acho eu.<br />E foi assim que me pus a pensar nele, à noite, no escuro, e pouco a pouco, comecei a pensar nele cada vez mais. E todas as noites, antes de adormecer, perguntava-lhe coisas em pensamento: como fazer para não ter pesadelos e proteger-me dos vampiros que chupam sobretudo o sangue das raparigas, mas pode às vezes algum confundir-me… nunca se sabe…<br />Eu não falava a ninguém do meu paizinho de nada. Porque é que havia de fazê-lo? Deitava-me e, assim que estava no escuro, pensava em mim, e depois não pensava em nada, o que me levava sempre a pensar nele. Era assim que as coisas se passavam.<br />Mas uma noite não foi assim.<br />Deitei-me, primeiro pensei em mim, como de costume, e quando ia a pensar em nada, ele apareceu. Como viera até ali, não sei. Talvez tenha caído ali, em cima da cama, mesmo ao meu lado. Fiquei deveras surpreendido, mas não tive medo. Porque é que havia de ter medo de um homenzinho de nada? Não acendi a luz. Não fosse ele desaparecer, como acontece com os fantasmas…<br />De qualquer modo, com o luar, via-se super-bem. Eu olhava para ele… A minha avó não estava enganada… Era, na verdade, um homenzinho que não valia nada, um miserável, menos que nada. Além disso, não dizia nada. Nem sequer olhava para mim. Olhava para o tecto como se quisesse saber o que estava a fazer ali, ou, então, observava as moscas, sei lá. Eu até sustinha a respiração. Era tão pequeno… Se eu respirasse muito forte, podia até levantar voo… Ele ali estava, com o olhar fixo no tecto, assim, sem se mexer, sem dizer nada, como se estivesse morto…, mas não estava nada morto. E os olhos dele brilhavam no escuro. Aproximei-me o mais que pude. Tanto, que os seus cabelos roçavam-me na cara. Tão perto, que senti que aquele maltrapilho tinha os pés gelados.<br />Então disse para mim que lhos ia aquecer. E pus os dois pezinhos de nada nas minhas mãos. É melhor assim, não é, paizinho? dizia eu na minha cabeça, porque, a ele, eu não sabia o que dizer…<br />Já devia ser um pé-descalço há muito, muito tempo, o meu paizinho de nada, porque eu não conseguia dar calor suficiente aos seus pequenos pés.<br />E eis que as suas mãozinhas se puseram a tremer ao lado do corpo, como se fosse uma espécie de pássaro ferido com as asas a palpitar de frio, de medo ou de outra coisa, mas não sei de quê.<br />Então, finalmente, apertei-o contra mim. Fiz asneira. Teve que ser com muito cuidado para não assustar o meu paizinho de nada. Ficou ali apoiado contra o meu coração que batia com muita força, deitado a olhar para o tecto, sempre; mas agora via que ele estava a sorrir, e eu dizia para comigo “Ora esta! Se a minha mãe visse este sorriso!”<br />O seu sorriso, adivinhem lá, era exactamente o meu! Aquele que a mãe gosta tanto de me ver fazer nas fotografias.<br />— Sorri, Luís — está sempre ela a dizer-me quando me tira uma fotografia.<br />Porque é que ela quer que eu arreganhe assim a beiça, se não há nada de engraçado? Isso é um mistério!<br />Mas ao ver o sorriso do meu paizinho de nada, começo a sorrir sem que ninguém mo peça, e ali ficamos como dois palermas, a sorrir e a olhar para o tecto.<br />Talvez as moscas se perguntem porque é que nós, o meu pai e eu, nos divertimos tanto. Só que nós nada temos a ver com tectos, moscas e aparelhos fotográficos ou qualquer outra coisa.<br />Eu e o meu paizinho de nada rimos sem motivo e quanto mais digo que não há motivo para rir, mais eu e o pai nos escangalhamos a rir, mas silenciosamente, para não acordar ninguém. Até choramos os dois um bocadinho!<br />Ah! Que bem que nos fez, rir assim, por nada!<br />O meu paizinho já não tem mais frio. Os pés estão quentinhos e as pequenas mãos abanam no escuro. Pergunto-me o que estará ele a fazer. Sentou-se em cima do meu peito e parece estar à procura de qualquer coisa. Vasculha os bolsos, vira-os do avesso. Não há nada lá dentro, nem um lenço sequer, mas, de qualquer maneira, os pais não choram… Apalpa-se por todo o lado, como se lhe tivessem roubado a carteira. Mas o que é que está ele ali a remexer?<br />Desce do meu peito, levanta a beira do lençol, a ponta da almofada.<br />Então eu digo-lhe baixinho:<br />— O que é que perdeste?<br />Mas ele só me fez “Chiu”, pondo o dedo em cima dos lábios.<br />Sinto que estou com sono, com tanto sono que até estou com medo. Não quero dormir, mas sinto que já estou a começar! Já penso em mim, depois em nada e nele, no meu paizinho de nada; digo a mim próprio que tenho de arranjar peúgas, calçado, para que não tenha mais frio nos pés…<br />Começo a pensar nele como se já não estivesse ali! Sinto-o a afastar-se, a ir embora, descalço, tal como veio… Quero impedi-lo de partir!<br />— Fica, fica comigo… — sussurro.<br />Ele murmura ao meu ouvido qualquer coisa que não entendo, mas na bochecha, e isto é mesmo certo, não posso estar enganado, sinto qualquer coisa tão doce, tão leve, um beijinho de nada…<br />Quando me levanto, sinto-me um bocadinho enjoado. Digo para mim mesmo que talvez tenha sonhado e isso ainda me faz sentir mais enjoado.<br />Esta manhã, a mãe disse-me que tenho má cara, que pareço um cadáver, disse ela, e manda-me ir lavar-me. Olho para o espelho e então vejo… o meu paizinho de nada deixou-me qualquer coisa…<br />Quando sorrio para o espelho, agora, tenho uma pequena cova… Faz um buraquinho na minha bochecha, exactamente ali, onde ele me beijou…<br />Um buraquinho de nada…<br /><br /><br /></span></div><div align="right"><span style="LINE-HEIGHT: 190%"><span style="font-size:85%;">Jo Hoestlandt<br /><em>Mon petit papa de rien du tout</em><br />Arles, Actes Sud Junior, 2000<br /><span style="font-size:78%;">Tradução e adaptação</span><br /></span><br /></div></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-34049321122164756902007-07-28T05:51:00.000-07:002007-07-28T05:52:08.873-07:00O meu avô, às vezes…<div align="justify"> <span style="LINE-HEIGHT: 190%"><br />Quando a minha avó morreu, o meu avô passou a morar sozinho no andar por baixo do nosso. O pequeno-almoço e o jantar prepara-os ele e, ao almoço, vem todos os dias a nossa casa. Quem lhe trata da casa e da roupa é a minha mãe.<br />Os meus pais resmungam um pouco de cada vez que vem, porque ele ouve muito mal, mas recusa-se a usar o aparelho. Costuma dizer que, com ele posto, ouve o próprio mastigar, e que não lhe agrada nada. Assim, ouvimo-lo nós e ainda por cima duas vezes mais alto! Mas é claro que nunca nenhum de nós diria isso ao avô.<br />Quando venho da escola e quero contar alguma coisa importante à minha mãe, não consigo. O avô fala ininterruptamente, e ainda por cima, sempre da mesma coisa: da vida no tempo dele, e principalmente, do último carro que teve. Sempre o mesmo! E tão alto, que nós nem conseguimos ouvir-nos uns aos outros. Mas zanga-se a sério se não o ouvirmos com atenção!<br />A minha mãe diz que o avô a enerva, e o meu pai concorda. Ele também já não aguenta mais a eterna conversa sobre o carro.<br />Outra coisa que o avô também tem sempre de dizer, são as compras que fez nesse dia e o que está a pensar comer à noite.<br />— Mas, avô, acabou agora mesmo de nos contar isso! — interrompe às vezes a minha mãe. O meu avô faz um aceno de cabeça mas continua.<br />— Isto acontece porque ele passa muito tempo sozinho e não tem mais ninguém com quem falar durante o dia! — diz o meu pai, quando nos ouve barafustar.<br />Então, ficamos cheios de pena do avô e prometemos ser mais amáveis com ele no almoço seguinte. Que diga pela vigésima vez o que lhe agrada tanto no seu automóvel, que nós vamos ouvi-lo com toda a atenção para que perceba que todos nos interessamos pelo seu carrinho.<br />O avô também gosta sempre de beber café com leite depois das refeições, mas não podemos esquecer-nos de trazer o leite num jarro, por exemplo. Ou noutra coisa qualquer, menos na embalagem. E, por muito que gostemos do avô, há uma coisa que vamos ter de continuar a esconder: os jornais e os prospectos de publicidade. É que o avô tem a mania de ler em voz alta tudo o que apanha, e nem quer saber se nós estamos interessados em ouvir o que está escrito no pacote do leite ou nos prospectos de publicidade.<br />Infelizmente, por mais cautelas que tivermos e por mais que arrumemos tudo o que possa ser lido, o avô acaba sempre por encontrar qualquer coisa. Ainda ontem ao almoço leu-nos uma factura que tinha vindo de manhã pelo correio. A minha mãe tinha-a posto ao lado do prato dela para a mostrar ao meu pai, e eu não devia saber de nada porque era de uma prenda de anos para mim, mas, quando o avô a apanhou, já era demasiado tarde…<br />O avô também traz sempre a agenda dele e lê-nos regularmente tudo o que anotou: o aniversário da tia Gertrudes, quando tem de levar carro à revisão, quando vêm buscar o ferro-velho, e quando sai o próximo número das palavras cruzadas. Quando as datas chegam, esquece-se do aniversário da tia Gertrudes, da revisão e do ferro-velho.<br />Às vezes rio-me tanto por causa do avô! Tem ideias brilhantes para tudo. Põe a mesa do pequeno-almoço à noite, de véspera. Como não gosta de lavar a loiça, tem sempre uma bacia com água e detergente em cima da banca, onde põe toda a loiça suja que juntou durante o dia. Antes de ir dormir, deita a água fora e deixa secar a loiça durante a noite. Diz que, assim, há já muito tempo que não usa panos da cozinha. E é precisamente por isso que a minha mãe volta a lavar tudo de cada vez que ele devolve qualquer coisa. E, quando me oferece sumo, eu lavo primeiro o copo muito bem.<br />— Mas está limpo! — admira-se ele. Então eu digo que o sumo me sabe melhor bebido por um copo molhado. — Cada um tem a sua mania! — ri o meu avô.<br />Também me rio de cada vez que o vejo a limpar a tábua do pequeno-almoço com o aspirador pequenino.<br />— É muito mais higiénico do que lavar com água! — explica. — A madeira absorve só a água e deixa ficar as migalhas, e o aspirador limpa tudo melhor.<br />— Ugh! — arrepia-se a minha mãe. O meu pai bem tenta tirar-lhe a ideia do aspirador, mas ele nem ouve. Já está a contar-lhe aos berros qualquer coisa sobre o carro ou sobre o queijo que comprou hoje e que vai comer mais tarde. O meu pai bem olha para a minha mãe à procura de ajuda, mas ela ri e encolhe os ombros.<br />Como gosta tanto de conduzir, o avô vai todas as manhãs ao supermercado, só que como ele precisa de muito poucas coisas, acaba sempre por comprar em demasia. E porque acha que todas as promoções são boas e baratas, compra em tanta quantidade, que acaba por nos dar o que lhe sobra.<br />— Ele faz isto com boa intenção — diz o meu pai. Mas a minha mãe zanga-se porque ela já foi às compras e nenhum de nós come as salsichas enlatadas mais baratas do mercado ou a sopa de pacote. Ela compra tudo fresco e tem em atenção a qualidade, enquanto o avô só olha ao preço. Quando traz um queijo enorme, por exemplo, fica todo contente por ter comprado um tão grande por tão pouco dinheiro. Que a validade já tenha acabado, isso não o incomoda. E como, de qualquer forma, não consegue comer tanto queijo, acaba por oferecê-lo logo todo inteirinho à minha mãe, que ainda por cima tem de agradecer, embora na verdade fique zangada.<br />Mas só uma vez é que a minha mãe se zangou a sério com o avô: foi quando ele resolveu não lhe dar tanto trabalho e ao mesmo tempo poupar pó da máquina. Andou uma semana inteirinha sem tirar a roupa interior.<br />— Eu estou a poupar — disse à minha mãe. — Antigamente também não se trocava de roupa interior todos os dias. Assim, tu não precisas de pôr sempre a máquina a trabalhar, e vocês poupam energia. Todos os dias vem no jornal que se deve poupar energia, e é assim que se começa!<br />— Assim não se começa nada! — gritou a minha mãe. E gritou tão alto, que o avô ficou assustado a olhar para ela.<br />— Pronto, está bem! — disse ele. — Eu só queria dar menos trabalho!<br />Então a minha mãe abraçou-o e disse-lhe que não tinha falado por mal. E entretanto o avô já passou a mudar a roupa todos os dias.<br />Na semana passada, de um momento para o outro, o meu avô não conseguiu levantar-se de manhã. Tinha dores no corpo todo. A minha mãe chamou logo o médico e nós ficámos muito preocupados com ele. Acabou por ter de ficar dois dias internado no hospital.<br />Esteve de cama até ontem. A minha mãe levou-lhe todos os dias a comida, mas hoje já se levantou e já tomou o pequeno-almoço na cozinha. Daqui a pouco vem almoçar connosco. Tivemos tanto medo! Agora estamos contentes por tê-lo de novo ao almoço. Sentimos muito a falta dele. E eu jurei passar a prestar-lhe sempre atenção. Mesmo quando me conta a mesma coisa quinze vezes seguidas. O avô não tem mais ninguém que o ouça, e precisa de nós. E nós precisamos dele, porque lhe queremos muito.</div><div align="justify"><br />Rolf Krenzer<br /><span style="font-size:85%;"><br />Jutta Modler (org.)<br /></span><span style="font-size:85%;"><em>Brücken Bauen<br /></em>Wien, Herder, 1987<br /></span><span style="font-size:78%;">Traduzido e adaptado</span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-74023307185955169862007-07-28T05:27:00.001-07:002007-07-28T05:27:54.601-07:00Farta de receber ordens<div align="justify"><br /><span style="LINE-HEIGHT: 190%">Era uma vez uma menina que estava farta de estar em casa. Farta, farta, farta que a mandassem para a escola; farta, farta, farta que se zangassem com ela para comer; farta, farta, farta que a obrigassem a vestir o que não queria e farta, farta, farta de não mandar nada em ninguém e toda a gente mandar nela!<br />Além disso, a menina estava amuada desde que tinha nascido, por lhe terem chamado Cátia Vanessa, quando preferia mil vezes que a tivessem baptizado como Penélope.<br />Um dia queixou-se à mãe:<br />— Mãe estou farta, farta, farta! Quero outra vida, quero mandar muito!<br />E a mãe desatou-se a rir (os adultos às vezes riem nas alturas mais estúpidas) e respondeu:<br />— Então faz-te à vida, filha: arranja casa e emprego, e depois mandas em quem quiser obedecer-te.<br />A Cátia Vanessa, ou Penélope como gostava de se imaginar, foi ter com o pai e repetiu-lhe a pergunta:<br />— Pai, pai, estou farta, farta, farta desta casa...<br />O pai, que estava a aparafusar uma estante, olhou para ela lá de cima, e disse-lhe:<br />— Ó minha amiga, põe a trouxa às costas e faz-te à vida!<br />Estava tudo doido naquela casa, pensou a Cátia Penélope Vanessa. E, ainda por cima, o pai e a mãe tinham aquela irritante mania de dizerem sempre a mesma coisa, mesmo quando não esta­vam juntos. Se fossem os pais dos seus amigos tinham-se atirado aos pés dos filhos a pedir-lhes para não se irem embora, a prometerem presentes se ficassem... Mas os pais da Cátia Vanessa, tinham dito, mais coisa menos coisa:<br />— Se não estás bem, muda-te!<br />Era demais! Agora ia mesmo fugir de casa, e depois é que os pais haviam de ver! Pegou numa mala e atirou as suas coisas mais preciosas lá para dentro: uma camisa de noite, a t-shirt com o golfinho de que mais gostava, uma bolsinha com moedas de ouro que a avó, mãe da mãe, lhe tinha dado em pequenina, e duas escovas de prata, herdadas da avó mãe do pai, que já tinha morrido. Depois, bateu a porta com o maior estrondo que pôde e começou a descer a rua, com um passo rápido. De vez em quando olhava por cima do ombro: de certeza que, com aquela barulheira, os pais tinham percebido que fugira e vinham atrás dela...<br />Mas, estranhamente, nada. E a Cátia Penélope Vanessa teve de virar a esquina, sabendo que nenhuma pessoa grande estava com ela... Quando se viu naquela rua onde nunca tinha estado sozinha, sentiu-se um bocadinho assustada. Assustada porque se tinha esquecido de pensar para onde ia. Não podia ir para casa de avós, nem de tios, nem de amigas, porque, se não, ligavam logo aos pais a dizer onde ela estava, e assim eles não se assustavam.<br />Sentou-se num degrau e pensou e pensou... Uma velhinha de lenço preto na cabeça, que ia a passar, parou para lhe falar:<br />— Perdeste-te, menina? — perguntou a senhora.<br />A Cátia deu um salto e agarrou-se com mais força à sua mala. Mas, como fora de casa era bem-educada (a maioria das pessoas são mais educadas fora de casa, vá-se lá saber porquê!), respondeu:<br />— Eu fugi de casa, mas não tenho para onde ir.<br />E a velhinha, tentando esconder o sorriso, perguntou, curiosa:<br />— Porque é que fugiste?<br />Aí a menina ficou um bocado envergonhada:<br />— Porque queria mandar muito! E porque estava farta de receber ordens de toda a gente... — murmurou baixinho. — E então os meus pais disseram para ir procurar alguém que obedecesse às minhas ordens, porque na casa deles, mandavam eles. É injusto!<br />A velhinha ficou muito séria. Pensou, pensou e depois respondeu:<br />— Já sei! Tenho exactamente aquilo de que precisas. Espera aqui um bocadinho que já volto.<br />E a menina Cátia esperou, porque também não tinha para onde ir. E, minutos depois, a velhinha voltou com um cachorrinho pequenino, de um castanho muito clarinho, orelhas compridas e um focinho com bigodes. E disse:<br />— É para ti. Assim não vais sentir-te tão sozinha, e podes mandar nele. Mas manda bem, porque os cães sabem muito bem o que é justo e o que não é. E se não for, é natural e bem feito que te dê uma dentada. Mas se for bem mandado, dá-te lambidelas e salta para brincar contigo.<br />A Cátia Penélope Vanessa ficou muito, muito contente. Disse obrigada várias vezes e voltou a subir a rua inclinada até à porta de casa. E agora, como é que ia voltar sem que fizessem troça dela? E se estivessem zangados? Mas, mesmo antes de ter tido tempo de abrir a porta, a porta abriu-se e a mãe agarrou-a ao colo, e apertou-a com muita força:<br />— Minha pateta, ainda bem que voltaste! Não conseguíamos viver sem ti!<br />E o pai desceu do escadote, atirou-a ao ar e disse:<br />— Não voltes a fugir, está bem?<br />E a Cátia mostrou-lhes o cão pequenino, e a mãe e o pai disseram que sim, que podia ficar com ele, desde que lhe desse de comer, o levasse ao veterinário e a passear à rua, o educasse a não fazer chichi dentro de casa e a não morder, e a obedecer às ordens dos donos. A Cátia olhou espantada:<br />— Mas isso é o que vocês fazem comigo!<br />Desataram todos a rir e a Cátia Penélope Vanessa decidiu que pelo menos um erro não ia repetir: não ia baptizar o cão com um nome de que ele não gostasse. Por isso perguntou-lhe como é que ele queria chamar-se. Como ele respondeu «Ão-ão», foi como «Ão-ão» que foi baptizado.<br /></div></span><div align="right"><span style="LINE-HEIGHT: 190%"><span style="font-size:85%;">Isabel Stilwell<br /><em>Histórias para contar em 1 minuto e ½</em><br />Lisboa, Verso da Kapa, 2005<br /><br /></div></span></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-36616891758918291202007-07-28T05:06:00.000-07:002007-07-28T05:18:50.930-07:00Tom visita o avô<div align="justify"><span style="LINE-HEIGHT: 190%">Que maus que os pais foram! Tão maus!<br />Tom, furioso, anda com passos pesados de um lado para o outro, como se os pais não existissem. Eles fazem de conta que não reparam no Tom furioso a marchar pela casa. Mas agora que ele fecha as portas com grande estrondo, começam a perder a paciência.<br />— O que é isso? – voltam os pais a ralhar quase ao mesmo tempo.<br />— Então achas que nós não gostamos tanto do avô como tu? – grita a mãe.<br />— Não, não gostam – responde Tom a gritar. — Se não, não o tinham mandado para aquele lar horroroso a cheirar a peixe!<br />— Ora – cede o pai. — Também não cheira a peixe todos os dias. O lar nem é assim tão mau.<br />— Mas o avô não quer lá estar! Ele não quer estar em nenhum lar! Foi ele próprio que mo disse!<br />— Tu ainda não entendes. – A voz da mãe soa normal outra vez. — Anda cá, querido – diz, estendendo os braços para Tom. — Tu ainda és muito pequeno para perceberes isto do avô.<br />Tom agora não é querido, e muito menos quando a mãe o diz. Por isso, não vai. Fica parado à entrada da porta, amuado, com a cara quente e corada, por onde lágrimas deslizam devagar.<br />A mãe não precisa de lhe explicar nada. Tom sabe muito bem que não se põe fora de casa uma pessoa de quem se gosta a sério.<br />Para perceber isto, não precisa de ser crescido.<br />Tom também não deitou fora o seu urso de pelúcia quando este deixou de ter pêlo. E Theo, o cão Baixote, também pôde ficar em casa quando ficou velho e se arrastava com dificuldade de sala para sala.<br />E o avô também ficou com a avó em casa quando ela, de um momento para o outro, perdeu o cabelo. E quando mais tarde deixou de poder andar, o avô começou a cuidar dela e dava-lhe até a comida na boca.<br />— A avó não vai para lar nenhum. Enquanto me aguentar em pé e puder andar, sou eu quem cuida dela. – dizia.<br />Depois a avó morreu, e morreu também um pedaço do avô. Em pouco tempo perdeu quase oito quilos.<br />Nunca mais prestou atenção ao que comia nem ao que vestia.<br />Preocupava-se com a sua mulher.<br />Mas não com ele.<br />Então os pais trouxeram-no para junto deles.<br />Para Tom, o avô foi, desde o princípio, um amigo adulto e sincero.<br />Alguém com quem ele podia rir e sonhar.<br />O avô contava histórias fantásticas enquanto fumava o seu cachimbo, que exalava um aroma doce e áspero. Como feno misturado com o cheiro de lareira. Tom voava para longe com o avô, para um país de aventuras em cima das nuvenzinhas de fumo.<br />O cachimbo foi um dos motivos que levou o avô a ter de se mudar. Os pais não suportavam o cheiro.<br />Também os incomodava que o avô desse de comer aos pombos no parapeito da janela.<br />— Sujam-nos tudo! – barafustava a mãe todas as manhãs.<br />O avô então raspava a sujidade com uma pequena pá de jardim.<br />Mas nunca conseguia agradar aos pais.<br />Se o avô estava a comer à mesa e não falava, diziam:<br />— Hoje está mudo.<br />Se falava, diziam:<br />— Hoje está senil.<br />— O cérebro já não funciona tão bem – explicaram os pais a Tom. — O teu avô já se esquece muito das coisas. Conta tudo três vezes.<br />— Por mim – respondeu Tom — pode contar tudo cem vezes. Eu escuto-o sempre.<br />Às vezes também arrotava um bocadinho. Os pais entreolhavam-se e repreendiam-no:<br />— Faça um esforço! Pelo menos em frente da criança!<br />Mas Tom defendia sempre o avô.<br />— E o que é que tem? Arrotar é engraçado – dizia. — Já os antigos cavaleiros o faziam.<br />E, em forma de protesto, soltava ele um arroto.<br />Tom acha que, quando se gosta de uma pessoa, também se deve aceitar os seus defeitos. Deve-se aceitá-la tal como é e não mandá-la simplesmente embora. Para um lar malcheiroso…<br />Só por duas vezes é que os pais foram com Tom visitar o lar e duas vezes num mês não é muito.<br />— Então vou lá hoje sozinho – declara Tom, porque os pais tornaram a arranjar uma desculpa para não irem visitar o avô.<br />— Nem pensar! – exclamou o pai, levantando-se de um salto. — Um lar de terceira idade não é um sítio próprio para crianças. Não perdeste lá nada, para lá teres de ir.<br />— Perdi, sim senhor! – exclamou Tom, batendo furiosamente com o pé no chão. — O meu avô!<br />— Mas hoje não podemos ir ao lar porque os Beckers vêm visitar-nos – intromete-se a mãe.<br />— Então, não deviam tê-los convidado.<br />Tom fecha com estrondo a porta do quarto. Fecha-se lá dentro à chave e ata a ponta de um fio grosso ao puxador da porta e a outra ponta à perna do armário, de forma que ninguém de fora consiga entrar. Em seguida, começa a pensar calmamente na melhor maneira de ir ver o avô. Que hoje, Domingo, vai ter com ele, já é ponto assente.<br />Tom tira do bolso do anoraque o mapa do metropolitano. Depois procura num mapa já velho a rua onde está o lar. A rua fica perto da periferia, onde estão muitos espaços verdes assinalados. Tom compara os nomes das estações do metro com os das ruas que conduzem ao lar. Tem de mudar três vezes.<br />“Não faz mal”, pensa. Já se orienta um bocadinho. Há um ano que vai sozinho para a escola.<br />Agora, já só precisa do passe e de algum dinheiro. Para uma emergência, como a mãe costuma dizer. Ao pensar em emergência, Tom sente uma pontada a atravessar-lhe a barriga.<br />Tira do armário o fato da primeira comunhão porque o faz parecer um pouco mais velho. Fica-lhe um pouco apertado nos ombros e o casaco termina mesmo abaixo do umbigo. As pernas das calças também estão demasiado curtas mas servem à justa. Agora, a gravata azul. Tom não sabe fazer o nó sozinho. Fica tão mal, que o melhor é ir sem gravata.<br />Rasga uma folha de papel do caderno da escola:<br />“Queridos Pais” – escreve a marcador. “Desculpem. Não queria magoar-vos. Mas também não quero magoar o avô. E hoje é a vez do avô. Tom.”<br />Soa um pouquinho diferente do que queria dizer, mas Tom está demasiado excitado para pensar em qualquer coisa melhor. Pousa a folha em cima da coberta da cama e alisa-a, contra o que é seu hábito, para que os pais consigam ver bem a mensagem.<br />Quando os Beckers tocam à campainha, cumprimenta-os delicadamente, tal como os pais querem que faça. Só quando se embrenham na conversa com os convidados é que Tom fecha, sem barulho, a porta da rua. Galga pelas escadas abaixo, como se a cadela dos vizinhos, uma Doge, com cara de porco, fosse a correr atrás dele. Sobe depressa a rua, vira duas vezes à direita. Na estação do metro, desce os degraus aos tropeções. As escadas rolantes parecem-lhe hoje muito lentas.<br />O metro aproxima-se.<br />As luzes amarelas brilham fantasmagoricamente no túnel, saem da escuridão e correm depressa para a plataforma.<br />“Eu vou ver o meu avô”, pensa Tom com muita força. Ao pensar isto, sente-se mais calmo.<br />Entra para o metro. O coração ainda está a bater-lhe no pescoço, de tanto correr. Sua de tal maneira por baixo do fato apertado que a camisa está colada às costas.<br />Agora tem de prestar atenção. De prestar muita atenção onde deve sair e trocar de linha.<br />A viagem dura ao todo uma hora. A Tom parece muito mais longa do que das outras vezes que foi com os pais ao lar. “O avô vai ficar contente”, pensa Tom.<br />Será que o avô vai ficar mesmo contente?<br />O avô vai compreender por que é que ele fugiu.<br />O avô compreende tudo.<br />Reconhece à distância o edifício alto e amarelo. Por fora, parece mais simpático do que por dentro. Ao lado do lar, há uma casinha pequena e baixa com uma placa cor-de-rosa por cima da porta, onde está escrito “Doces e Bombons”.<br />Tom compra para o avô uma tablete de chocolate amargo. Da marca que ele tanto gosta.<br />— Podia embrulhar a tablete como prenda?<br />A vendedora embrulha a tablete em papel de seda branco e enfeita-a com uma fita encaracolada.<br />— Obrigado – diz Tom, ficando outra vez com o coração aos saltos. Nunca tinha comprado uma prenda para ninguém. Só gelados e gomas para si.<br />Hoje está mesmo muito crescido!<br />O bater do coração torna-se mais forte à medida que Tom se aproxima da portaria do lar.<br />— Faz favor… faz favor, eu gostava de ir ter com o meu avô – diz, através da abertura do vidro, pondo-se muito direito para parecer um pouco maior. O porteiro vai acabar por lhe perguntar que idade tem e, se calhar, crianças tão pequenas não podem mesmo ir sozinhas fazer visitas.<br />— Então tens de me dizer como se chama o teu avô – diz amigavelmente o homem atrás da janela. — Temos cá, pelo menos, sessenta avôs!<br />— Rudolfo Dolezal – diz Tom com clareza.<br />O porteiro folheia um livro grosso escrito à mão, segue com o dedo ao longo da comprida lista.<br />— Quarto 204D! – E a seguir:<br />— Mas que idade é que tu tens?<br />Tom engole em seco. A saliva está-lhe colada na garganta. Não pode inventar tantos anos como os que precisaria.<br />— Pergunto por causa do elevador – diz o porteiro. — É que só as crianças com mais de doze anos podem andar sozinhas.<br />— Eu vou a pé de qualquer maneira – diz Tom aliviado. E corre em direcção à escada.<br />— Quarto andar! – grita-lhe ainda o porteiro.<br />“Tantas portas!” pensa Tom. Lê em voz alta os números que estão por cima:<br />— 196C, 178C, … É aqui!<br />Finalmente aparece a letra D. Tom murmura para si os números que estão à frente:<br />— 180D… 200D… 204D!<br />Tom bate à porta, baixinho. Depois, mais alto. E ainda mais alto.<br />Do outro lado, o silêncio continua.<br />Com cuidado, tenta abrir a porta, mas está fechada à chave. O avô não está no quarto.<br />Tom respira fundo. E agora, o que é que vai fazer? Nesta enorme casa desconhecida, com tantos corredores e tantos quartos?<br />Vai procurar pela casa toda, revistar cada sala à procura do avô. E se ele foi passear? Então, já deve estar a chegar. No lar, as pessoas jantam às seis horas. E já são cinco.<br />Tom desce à portaria a correr.<br />— Onde posso encontrar o meu avô? Ele não está no quarto.<br />— Vê na sala de leitura. Ou na sala da televisão. Se calhar está lá sentado!<br />Um rapaz com uma bata e calças brancas vem pelo corredor na direcção de Tom. É um enfermeiro e parece simpático.<br />— Desculpe, poderia dizer-me onde posso encontrar o Sr. Rudolfo Dolezal? É o meu avô.<br />— Dolezal…? – O enfermeiro leva a mão à cabeça e pensa.<br />— Certo! Dolezal Rudolfo! Levei-o ontem à noite para baixo, para a secção dos doentes. Está na enfermaria, rés-do-chão à esquerda.<br />Tom sente-se gelar. Como se tivesse caído despido num buraco na neve. Volta a si lentamente e pergunta:<br />— Mas o meu avô não morreu, pois não?<br />— Claro que não – acalma-o o rapaz, sorrindo. — Se não, não estaria na enfermaria. Anda, eu levo-te até ele. Ontem a meio da noite, o teu avô teve uma crise de vesícula bastante má – explica-lhe o enfermeiro pelo caminho. — Por isso é melhor que esteja sob vigilância médica até que melhore.<br />Tom conhece as crises de vesícula. O avô vomita imenso e tem muitas dores. Uma vez, ficou com a cara de um cinzento escuro e os lábios meios azuis. Tom decide não mostrar ao avô cinzento escuro o aspecto horrível que tem.<br />Ali está ele. Na última cama junto da parede. Muito pálido. Não cinzento. Os lábios estão acastanhados e não azuis.<br />O avô tem quase a cara de sempre.<br />Assustado, senta-se de um salto.<br />— Olha! Como é que vieste aqui parar, Tom? Onde é que estão os teus pais? Mas eu não contei nada a ninguém da minha crise!<br />As frases saltam-lhe umas atrás das outras.<br />— A nós não nos aconteceu nada, avô – Tom dá-lhe um grande beijo. Que fria que a cara está hoje! — Mas o que é que se passa contigo? Já estás bom?<br />E antes que o avô pudesse responder, Tom continua:<br />— Eu senti que estavas doente. Senti mesmo a sério. No preciso momento em que me sentei na tua cadeira verde antiga. É! Lá mesmo! E aqui estou eu!<br />Tom pensara nesta pequena mentira de emergência para justificar o motivo da fuga, caso de o seu amor pelo avô não fosse motivo suficiente. Quando alguém está doente, deve-se sempre ir visitá-lo.<br />O avô suspira. Puxa-lhe a cabeça para si e aperta-a contra o peito.<br />— Menino, menino – diz baixinho. — Tu fugiste de casa!<br />Tom não diz nada.<br />— Já telefonaste ao menos aos teus pais a dizer que chegaste bem?<br />— Ainda não telefonei – responde Tom baixinho. — Mas deixei-lhes um bilhete em cima da cama e está lá tudo explicado.<br />— Mesmo assim tens de lhes dizer que estás aqui. Que está tudo bem contigo. Mas – acrescenta o avô – nem uma palavra sobre a minha crise de vesícula. Nem uma palavra! Prometes?<br />Tom acena com a cabeça.<br />Deixa-se ficar mais um pouco sentado na cama.<br />— Queres voltar para nossa casa quando estiveres bom?<br />— Não, meu filho. Não… – o avô abana a cabeça.<br />— Mas aqui também não gostas de estar. É verdade?<br />— Aqui também não – diz o avô. — Mas agora estou aqui. Tenho de me conformar. Em qualquer lado se pode ter um pouco de alegria. Em qualquer parte do mundo! Basta querer.<br />— E tu queres? – pergunta Tom.<br />— Se quero! – diz o avô a rir. — Nem consigo lembrar-me quando foi a última vez que tive uma alegria.<br />— Toma – diz Tom dando-lhe a tablete de chocolate meia amolecida. — Para teres outra alegria.<br />— Obrigado! – O avô pega no chocolate meio derretido e desembrulha-o com muito cuidado. Tira o papel de prata colado ao chocolate muito devagar, e põe-no na mesinha de cabeceira.<br />O avô não costuma ser tão vagaroso Tom vê claramente que ele está a pensar.<br />— Não foi lá muito correcto o que tu fizeste – diz, de repente. — Penso que sabes isso.<br />Tom acena com a cabeça.<br />— Mas mesmo assim foi bonito – e puxa Tom novamente para si num abraço tão apertado que ele quase nem consegue respirar.</span></div><div align="right"><span style="LINE-HEIGHT: 190%"><br /><br /><br /><span style="font-size:85%;">Evelyne Stein-Fischer<br /></span><span style="font-size:85%;"><em>13 Geschichten vom Liebhaben<br /></em>München, DTV Junior, 1990<br /></span><span style="font-size:78%;">Tradução e adaptação</span><br /></div></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-59789135842294381732007-07-28T04:54:00.000-07:002007-07-28T04:58:20.645-07:00A bisavó<div align="justify"><span style="LINE-HEIGHT: 190%">Jacob vai visitar a bisavó que está doente. Ela já não pode andar. Os pés doem-lhe. Não consegue fazer renda. As mãos doem-lhe.<br />Mas, "torcer" pelo Jacob, ainda consegue, como costuma dizer.<br />— Não morras — pede-lhe Jacob. — Promete-me!<br />— Não posso prometer-te isso — diz a bisavó. — Mas, mesmo quando morrer, vou estar sempre contigo e pensar em ti lá do céu. Só espero que me sinta melhor do que aqui. Ao lado de Jesus, não vou ter mais dores. Ao lado de Jesus, vou sentir-me forte e alegre.<br />Jacob fica a pensar.<br />— Mas gostava que te deixasse a cara que tens agora — diz-lhe. — Porque és bonita.</span></div><div align="right"><span style="LINE-HEIGHT: 190%"><br /><br /><span style="font-size:85%;">Lene Mayer-Skumanz (org.)<br /><em>Jakob und Katharina</em><br />Wien, Herder Verlag, 1986<br /></span><span style="font-size:78%;">(texto traduzido e adaptado)<br /></span></div></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-60216509600280048762007-07-28T04:48:00.001-07:002007-07-28T04:54:13.068-07:00Escuta as vozes da terra<span style="LINE-HEIGHT: 190%"><div align="justify"><br />Durante a infância, o meu avô era o meu melhor amigo. Quando estávamos juntos, tudo me parecia perfeito.<br />Gostávamos ambos de passear pelos bosques. Nunca íamos muito longe, nem andávamos muito depressa. Escolhíamos caminhos sinuosos. Enquanto caminhávamos, fazia lhe imensas perguntas.<br />― Avô, por que…?<br />― O que se passaria se…?<br />― Será que às vezes…?<br />Um dia, perguntei-lhe:<br />― Avô, o que é uma oração?<br />O meu avô ficou em silêncio durante muito tempo. Quando chegámos junto das árvores mais altas da floresta, respondeu-me com uma pergunta:<br />― Alguma vez ouviste o murmúrio das árvores?<br />Pus-me à escuta, atento, mas em vão.<br />― Vê como as árvores sobem até ao céu. Tentam subir sempre mais. Querem chegar às nuvens, ao sol, à lua e às estrelas. Procuram elevar-se até ao céu.<br />Pensei nas árvores, procurei ouvi-las. Enquanto reflectia, sentei-me numa rocha velha, coberta de musgo. O meu avô explicou:<br />― As rochas e as montanhas também falam connosco. A sua calma e o seu silêncio inspiram-nos tranquilidade.<br />Depois de ter reflectido durante bastante tempo, peguei numa pedra e coloquei-a no meu bolso.<br />Caminhámos um pouco mais, até junto de um ribeiro. A água borbulhava, cintilava, e viam-se pequenos peixes a nadar.<br />― Avô, os ribeiros também murmuram?<br />― Claro. Bem como todos os lagos, rios e cursos de água. Às vezes, correm tranquilamente. Espelham as nuvens, os pássaros, o sol ou as estrelas. Outras vezes, escoam-se em redemoinhos, lançam-se no mar ou evaporam-se no céu. E o ciclo recomeça… Também se riem e divertem com os seus amigos rochedos. Dançam, saltam, tornam a cair…<br />― Mas a natureza conhece outras formas de se exprimir. As ervas altas procuram o sol e as flores exalam o seu perfume doce. Quanto ao vento, sussurra, geme, suspira, e sopra-nos as suas palavras.<br />― Escuta o canto dos pássaros de manhã cedo, escuta o seu silêncio antes do nascer do sol. Consegues ouvir a melodia do pintarroxo ao cair da tarde? Os animais correm pela floresta, tornam-se reluzentes com a água, escalam montanhas, voam até às nuvens, ou refugiam-se na terra. É assim que todos os seres vivos participam na beleza do mundo…<br />Calámo-nos os dois. O meu avô olhava o horizonte e eu reflectia no que ele me tinha dito sobre as rochas, as árvores, a erva, os pássaros e as flores. Acabei por lhe perguntar de que modo rezavam os homens.<br />O meu avô sorriu e passou a mão pelos meus cabelos. Respondeu:<br />― Tal como a natureza, os homens têm a sua linguagem própria. Podem inclinar-se para cheirar uma flor, ver o sol despontar no horizonte, sentir a terra mover-se docemente, ou saudar o dia que começa. Podemos passear num bosque coberto de neve num dia de Inverno e ver o nosso próprio sopro confundir-se com o sopro do mundo. A música e a pintura são também formas de nos exprimirmos, de falarmos…<br />― Às vezes, sentimo-nos tristes, doentes ou isolados. Então, repetimos as palavras que os nossos pais e avós nos legaram. Mas é preciso que cada um encontre as suas próprias palavras. O que é importante é dizer o que verdadeiramente se sente, o que nos vem do coração.<br />Passado algum tempo, o meu avô disse-me que eram horas de regressar. Mas eu tinha uma última pergunta:<br />― Há respostas para as nossas orações?<br />Sorriu.<br />― Se as escutarmos atentamente, as orações contêm as suas próprias respostas. Nós somos como as árvores, o vento e a água. Não podemos mudar o que nos rodeia, mas podemos mudar-nos a nós mesmos. É evoluindo que transformamos o mundo.<br />Depois deste passeio, ainda voltámos a passear juntos. De cada vez, tentei escutar as vozes da terra, mas creio que nunca as ouvi.<br />Um dia, o meu avô deixou-nos. Continuei a pensar nele com todas as minhas forças, mas ele não voltou. Não podia voltar. Rezei até mais não poder. Depois, deixei de o fazer. Sem ele, tudo me parecia sombrio, e sentia-me muito só.<br />Alguns anos mais tarde, durante um passeio, sentei-me debaixo de uma árvore enorme. Os ramos mexiam e as folhas sussurravam. Ouvi o murmúrio de um ribeiro e o canto de um pintarroxo, pendurado numa madressilva. Ouvi também um ligeiro sussurro, misturado com o sopro do vento, com o canto dos pássaros e com o marulho da água.<br />Tal como o meu avô me ensinara, a terra falava comigo. Então, também eu murmurei, docemente:<br />― Obrigado pelas árvores grandes e pelas flores, pelos rochedos e pelos pássaros. E, sobretudo… obrigado pelo meu avô!<br />Foi então que algo aconteceu. Senti – outra vez – o meu avô perto de mim…<br />E, pela primeira vez desde há muito tempo, tudo me parecia perfeito.<br /><br /><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /></div><div align="right"><span style="font-size:85%;">Douglas Wood<br /><em>Escuta as vozes da terra</em><br />Paris, Gründ, 2000<br />Tradução e adaptação </span><br /><br /></div></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-21361789423273410352007-07-27T14:30:00.000-07:002007-07-28T05:53:16.032-07:00Chiu, o rei está ocupado<span style="LINE-HEIGHT: 180%"><p align="justify">Num grande e poderoso reino, vivia um rei muito ocupado. Passava a vida entre os seus papéis e ninguém lho censurava. — São os assuntos do reino — murmurava ele.<br />Este rei muito ocupado era pai de um menino que tinha o direito de subir para os joelhos do pai cinco minutos de manhã e cinco minutos à noite. Depois do que, o rei muito ocupado logo parava de fazer "cavalinho, cavalinho" e murmurava com ar sério:— Os assuntos do reino, meu filho.<br />Um dia, o principezinho desenhou um lindo avião a jacto. E quis que o pai também visse o desenho.<br />— Chiu! — disse a rainha. — O rei muito ocupado encontra-se no seu escritório da sala oeste. Está a tratar dos assuntos do reino.<br />Num outro dia, o principezinho aprendeu com o velho jardineiro do castelo a podar as roseiras. Foi um trabalho árduo, com arranhaduras e tudo, e ele quis mostrá-lo ao pai.<br />— Mostra-mo a mim — disse a rainha, que estava sempre muito satisfeita e sorridente. — Adoro rosas, mesmo com espinhos.<br />— Não, quero mostrá-lo ao rei — disse o principezinho, que achava que a mãe ia forçosamente gostar do seu trabalho, e que assim não tinha piada.<br />— O rei muito ocupado está no escritório, na ala oeste. Assuntos do reino –– respondeu-lhe tristemente a rainha.<br />Foi assim que o principezinho cresceu, dispondo, em cada dia, de dez minutos paternos. Muitas vezes, punha-se a reflectir e perguntava-se o que se passaria de tão importante na sala oeste do reino.<br />Imaginava o rei com uma montanha de cadernos diante dele, a fazer somas de oito algarismos, multiplicações enormes. Imaginava também o telefone a tocar e o pai a responder:<br />— Alô Moscovo? Daqui Pequim (ou o contrário). Três milhões? Sim, compro.<br />E o menino ficava muito impressionado quando pensava que o pai não ousava ultrapassar com ele os dez minutos diários.<br />O principezinho tinha muito bons resultados na escola, mas, por vezes, era bastante insolente. E o professor não estava satisfeito. Advertiu o rei, que enviou então uma carta ao filho:<br /><br />Querido príncipe,<br /><br />Se não começar de imediato a obedecer ao seu professor, a sua insolência será gravemente punida. Não pode ocupar-se dos assuntos do reino quem não obedece às leis.<br /></p><p align="right">Com amizade e os melhores cumprimentos,<br /><br />o rei seu pai.</p><p align="justify"> </p><p align="justify">O principezinho julgou que era uma linda carta e pô-la diante da sua secretária. Lia-a muitas vezes, porque significava que o rei muito ocupado tinha dedicado ao menino cinco minutos do seu tempo a escrevê-la. Mas, estranhamente, as palavras não lhe penetravam no coração. E continuou insolente na escola.<br />Num outro dia, o principezinho decidiu ir à ala oeste do castelo. Apareceu com a sua mega-pistola laser ultra-ruidosa, pôs-se atrás da porta e fez "blip, blip, blip", "zigu, zigu, zigu", "schlak, schlak"! Do outro lado da porta, foi a confusão generalizada.<br />— O que se passa? Um ataque aéreo? Depressa, terroristas! Alerta vermelho!<br />E, quando deitaram a porta abaixo, encontraram um rapazinho com uma pistola.<br />— Aí está o terrorista! — gritou o rei muito ocupado. — Agarrem-no! Neutralizem-no!<br />— Não, não, sou o seu filho de seis anos — disse o príncipe.<br />— Venho vê-lo por um motivo da mais alta importância. Quero jogar uma partida de <em>flipper</em> consigo.<br />O rei muito ocupado possuía, apesar de tudo, alguma lucidez, e deu-se conta de que tinha passado toda a vida na ala oeste do palácio, a ponto de, durante seis anos, só ver o filho dez minutos por dia, e ainda por cima na obscuridade da manhã e ao cair da noite. E eis que tinha confundido o principezinho com um terrorista!<br />Levantou-se e disse aos seus ministros:<br />— Suspendemos a reunião. Um assunto da maior urgência chama-me junto do meu filho. Queiram desculpar-me.<br />E foi então jogar um <em>flippe</em>r dos diabos no café em frente.<br />Foi assim que, graças ao falso ataque terrorista, passou a haver regularmente partidas de <em>flipper</em>, passeios e discussões entre pai e filho. E juro-vos que os assuntos do reino não foram descurados por isso.<br />Chegou então o dia em que, quando o filho completou vinte anos, o velho rei alquebrado e cheio de cabelos brancos, passou da ala oeste para a ala este, preparada para o seu repouso.<br />Foi a vez do principezinho, muito jovial, ocupar a ala oeste e se tornar o Rei muito Ocupado Júnior.<br />O velho rei, no seu quarto, olhava com nostalgia os papéis e os dossiers do reino e folheava-os muitas vezes, com saudades do tempo em que era jovem e poderoso.<br />Muitas vezes ia deambular para a ala oeste, onde o jovem rei muito ocupado tratava dos assuntos do reino. Mas diziam-lhe:<br />— Chiu! O Rei Júnior está a trabalhar!<br />Então, colava a orelha à porta, ouvia o ruído do papel, um bip bip, e uma voz longínqua falar ao telefone. E dizer "Alô Moscovo? Daqui Paris", ou talvez o contrário.<br />Então, o velho rei alquebrado e com os cabelos todos brancos sentava-se num pequeno banco no corredor e esperava.<br />Uma vez por dia, o jovem rei muito ocupado saía da ala oeste para jogar uma partida de <em>flipper</em> com o pai. Quando digo <em>flipper</em>… quero apenas dizer uma partida de xadrez, uma pequena conversa, um passeio pelo jardim para podar as roseiras, e outras coisas da mais alta importância.<br />Durante os passeios, o velho rei não cessava de lembrar, em jeito de balanço, aquele famoso ataque terrorista numa tarde de Novembro. E não parava de repetir (porque já era bastante idoso):<br />— Ah, como tiveste razão! E como somos patetas, nós, os reis muito ocupados, quando pensamos que, se não trabalharmos vinte e quatro horas por dia, e até mais, nos assuntos do reino, este pode desaparecer, e nós com ele!<br />E olhava muitas vezes para os cabelos do filho, cheio de admiração:<br />— Como são bonitos os teus cabelos pretos! Como são brilhantes os teus olhos! Como és um bom rei!<br />O velho rei alquebrado e de cabelo todo branco suspirava ao pensar no seu antigo poder. Mas não era um suspiro de tristeza, porque se sentia muito orgulhoso do filho, que ia suceder-lhe. E ambos sorriam em silêncio, olhando juntos o pôr-do-sol sobre o reino.</p></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-40061699500569034262007-07-27T14:22:00.001-07:002007-07-28T04:27:23.570-07:00O principezinho tirano<span style="LINE-HEIGHT: 180%"><p align="justify"><br />Num reino longínquo, uma rainha desesperava-se por não ter filhos.<br />– Temos de ter um! Temos de ter um! — gemia o rei. — Para quem ficará este soberbo reino que me deixou o meu pai, que o recebeu do seu pai, e assim sucessivamente, até à criação do primeiro pai sobre a Terra? A quem entregarei a minha coroa, quando os meus ossos se tornarem velhos e quebradiços, quando estiver cheio de cabelos brancos e tolhido de reumatismo?<br />– Que quadro tão terrível da velhice me está a pintar, meu amigo! – exclamou a rainha, que também não tinha vontade nenhuma de envelhecer sem filhos. – Mas não deixa de ter razão: precisamos de ter uma criança.<br />A rainha consultou todos os manuais e os médicos mais poderosos e mais sábios. Por fim, graças a um deles, um bebé começou a mexer-se no seu ventre e depois a crescer, tranquilamente, em lindos lençóis.<br />– Cuidado! — preveniu-os o médico. – Este principezinho será o vosso tesouro, mas não lhe dêem mimo demais. Não tenham pressa em fazer dele um pequeno rei.<br />No entanto, mal o médico virou costas, a rainha pegou logo no pequeno príncipe e começou a enchê-lo de mimos.<br />– Tu és o meu reizinho, o meu único rei, e os teus desejos são ordens.<br />Esta frase não caiu em saco roto. Meteram numa redoma aquela criança infinitamente preciosa e, todas as manhãs, uma criada diplomada levava-lhe biberões de leite de burra e mel de abelhas raras. Dormia num colchão de pétalas de rosa colhidas na Abissínia às cinco horas da manhã, e em lençóis bordados a ouro. Para o servirem, uma dúzia de criadas corriam de um lado para o outro e dormiam a seus pés. Estava protegido de tudo: da mais leve brisa, do menor sopro, da mais pequena nuvem… Para o aquecerem, tinham construído um sol artificial, que não queimava a pele, mas que fornecia vitamina D. Foi assim que ele cresceu, tranquilamente, em silêncio, e cheio de tirania, porque os seus desejos eram ordens e esta frase não tinha caído em saco roto.<br />No dia em que completou sete anos, pareceu conveniente aos pais tirar aquela criança adorada da sua redoma de vidro.<br />– Meu pequerruchinho, agora já és grande!<br />– Não sou pequerruchinho nenhum. — disse o príncipe com desdém. – E se quer beijar-me, autorizo-a a que me beije os pés. É quanto basta.<br />Depois, dirigiu-se ao pai nestes termos:<br />– Eh, ó rei velhote, passa para cá a tua coroa!<br />O velho rei entregou-lhe a coroa sem dizer uma palavra, porque nunca havia dito “não” ao principezinho, nem quando ele tinha um dia, nem quando ele tinha três meses. Como proibi-lo então de alguma coisa aos sete anos de idade? E foi assim que o principezinho se transformou em rei. Um rei tirano de sete anos e alguns dias. Mandou cortar todas as árvores, porque lhe tinha caído uma ameixa na cabeça; mandou estrangular os tentilhões um a um, porque cantavam de manhã muito cedo; mandou prender a rainha sua mãe no 749º andar da mais alta das suas torres, porque ela se tinha atrevido a mandá-lo fazer os seus deveres reais. É o que por vezes acontece quando se é criado numa redoma.<br />O pior é que, apesar dos seus caprichos, ele tinha sempre um rosto infeliz e gritava:<br />– Sinto-me sozinho!! Estou triste!! Ninguém gosta de mim!!<br />Quando viu aquele cortejo de disparates, uma violenta cólera apoderou-se do velho rei sem manto e sem coroa. Uma cólera que parecia um mar enraivecido.<br />– Anda cá, meu patife! — ralhou com voz grossa.–– Que sorte a minha, ter de aturar um garoto tão mal educado! – o que era um verdadeiro rosário de palavrões para um rei tão bem educado como ele. E continuou:<br />– Anda cá, que vais levar um bofetão, um tabefe, uma palmada no traseiro. Ainda não apanhaste que chegasse, na tua vida!<br />A rainha, embora fechada no 749º andar, ouviu os gritos e desmaiou na sua torre. “Seremos condenados à morte”, pensava. “Seremos lançados do alto da torre.”<br />Mas não foi o que aconteceu. Muito sensatamente, o pequeno rei devolveu a coroa ao pai, murmurando:<br />– Perdão, papá.<br />O velho rei recuperou a coroa, o trono e o poder. Libertou a mulher e disse-lhe:<br />– Quando se entrega cedo demais a coroa a um pequeno príncipe, pode-se fazer dele um tirano insuportável! Bem que o médico nos avisou, minha querida!<br />E a vida continuou como antes. Com um pouco mais de ordem, de civismo. Quem era o mais feliz? O principezinho. Com o pai, aprendeu a jogar ao berlinde e a rir-se com as histórias divertidas que ele contava.<br />– Ah! — dizia ele. – Como é bom ser criança, não pensar em nada de muito sério e passar o tempo a brincar!</p><p align="right">Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5799327082722920822.post-207898759861420632007-07-27T14:11:00.000-07:002007-07-27T14:19:47.200-07:00O pão de tâmaras e nozes<span style="LINE-HEIGHT: 180%"><p align="justify"><br />Sebastião está sentado ao colo do pai a brincar ao “Quanto é que gostas de mim?”<br />— Quanto, pai?<br />— Assim! — e o pai aperta Sebastião com força contra si.<br />— E da Joana?<br />— Assim! — outro apertão forte.<br />— E da mãe?<br />— Assim!<br />— E de nós todos juntos?<br />— Assim, assim, assim!<br />Sebastião solta gritinhos de alegria porque o pai o aperta com muito força, e diz em seguida:<br />— E a mãe gosta tanto de ti como do pão de cada dia.<br />— Como?<br />— Foi ela que disse. Ou qualquer coisa parecida. Gosta assim de ti porque tu estás sempre presente para nós como o pão de cada dia.<br />— Também não está mal dito — responde o pai.<br />Sebastião pensa por uns momentos.<br />— Porque é que não disse ‘bolo’?<br />— Porque não se come bolo todos os dias. Pão, sim. Precisamos de pão para viver – e o pai bate com a mão na testa. — Pão! Não queríamos cozer um pão especial para pôr no cesto da Páscoa?<br />— Sim! No forno do avô!<br />Quando o pai era novo, viveu na quinta Hinteregg. Já mora no vale há muito tempo mas a pequena quinta com as macieiras e o forno antigo ainda lhe pertence. De cada vez que é preciso cozer pão, Sebastião e os pais vão a Hinteregg.<br />— Pai, faz um pão como o que Jesus comeu no tempo dele.<br />— Estás a falar da última ceia? Nessa altura comeu pão matzo, segundo a tradição judaica. Era um pão ázimo, seco e fino feito sem fermento. Estás a falar de um desses pães?<br />Sebastião franze a testa.<br />— Não. Gostava de algo mais substancial. No Domingo, vou perguntar outra vez à Lena, logo depois da missa.<br />A catequista tem um livro de receitas do tempo de Jesus.<br />— O teu pai tem razão — diz a Sebastião. — Durante os feriados de Pesach, os judeus não comiam nada feito de massa levedada. Faziam bolos de especiarias com farinha de matzo e ovos. Mas para outros dias de festa tinham pães levedados. Olha, aqui está: pão de passas, trança de sésamo, pão de figos, pão de nozes e tâmaras…<br />— Pão de nozes e tâmaras soa bem — diz Sebastião.<br />— Eu vou copiar-te a receita — diz Lena. — Achas que o teu pai podia levar o grupo da comunhão? Cozer pão em Hinteregg seria uma óptima aula de grupo!<br />O pai estuda a receita e suspira.<br />— Com fermento natural? Mas vai demorar dias!<br />— Não faz mal — diz Sebastião. — Ainda há tempo. Posso dizer aos meninos que vamos cozer pão na Quinta-Feira Santa?<br />O pai suspira outra vez.<br />— Está bem. Vou então tirar livre a Quinta-Feira Santa. E agora vou mostrar-te como se faz levedura natural.<br />Numa bacia de barro mistura, com uma colher de pau, farinha integral com água morna. Depois coloca a massa lá fora, no terraço soalheiro.<br />— A mistura precisa de ar para poder fermentar. No ar há microrganismos tão minúsculos que só se podem ver ao microscópio. Os fermentos penetram na massa e modificam--na com os seus gases até ficar pegajosa e com bolhas.<br />À noite, Sebastião traz a terrina para a sala para a massa ficar ao calor. No terceiro dia começam a aparecer as primeiras bolhas. A massa também já tem outro cheiro.<br />— Isto está a ficar bom?<br />— Sim. Cheira a fermentado. É neste começo de fermento que misturamos agora farinha e água para fazer o fermento final.<br />Na manhã de Quinta-Feira Santa, Sebastião espantou-se. O fermento tinha duplicado de tamanho! O pai deita um pedaço numa chávena que guarda no frigorífico.<br />— É para a próxima vez que cozermos pão. Agora vamos fazer a massa para o teu pão de nozes e tâmaras. Para isso vamos precisar do maior alguidar que houver cá em casa!<br />O pai volta a misturar farinha e água morna, depois mel e uma chávena pequena de azeite, tâmaras e nozes secas picadas finas. Amassa com força e cobre a massa com um pano da cozinha.<br />A mãe abana a cabeça:<br />— Antigamente cozer pão era tarefa de mulheres, não era? E bem morosa!<br />A mãe enche um cesto com a merenda para Hinteregg, porque até mesmo o aquecer do forno e o cozer demoram horas. Sebastião e o pai levam para o carro o recipiente com a massa. Vão buscar as crianças à paragem do autocarro e depois sobem a montanha.<br />Na antiga cozinha de Hinteregg cada criança dá forma ao seu pão. São depois cobertos com panos e colocados ao sol. Agora têm de “crescer” pelo menos durante duas horas. Sobra-lhes muito tempo para merendar e brincar. Mas todos querem ajudar a acender o forno.<br />O antigo forno está ao ar livre na orla do pomar. Tem espaço para nove pães. O pai de Sebastião empilha os cavacos de madeira segundo uma forma que aprendera em pequeno com a avó. Espera até a madeira ter ardido e ficar reduzida a brasas. As crianças mergulham ramos de pinheiro num balde de água. O pai varre as brasas para o lado e varre o chão com os ramos hú- midos. Agora é tão emocionante!<br />Cada criança faz uns riscos por cima do pão com uma faca. De seguida os pães vão ao forno. O pai mete-os lá dentro com uma pá de cabo comprido e fecha a porta.<br />— Já ganhaste uma cerveja — diz Sebastião.<br />— E um pão de queijo — diz Susana.<br />É bom sentar-se ao lado do forno quente e sentir o vento de Primavera na cara. É agradável imaginar como Maria terá cozido pão para o seu pequeno Jesus e para José, há dois mil anos. As tâmaras, comprara-as a um vendedor.<br />— Mercadoria de Jericó de primeira categoria! — teria garantido o vendedor.<br />Terá Jesus ajudado a fazer a massa? Ter-se-á ajoelhado, impaciente, diante do pequeno forno de barro bojudo? Ou só provou o pão de tâmaras e nozes mais tarde, aquando da sua primeira peregrinação a Jerusalém, com doze anos?<br />— Esperai aqui à sombra — pode ter dito José. — Aquele padeiro ali vende pão de tâmaras e nozes segundo uma antiga receita de Jericó. — E meteu-se na confusão da multidão para comprar esta saborosa especialidade para os seus dois entes queridos. Com um pouco de queijo fresco com ervas, uma mão-cheia de azeitonas e um copo de chá de menta, o pão era uma refeição completa.<br />Passada uma hora, o pai tira o pão de tâmaras e nozes do forno. Como cheira bem! Sebastião tem água na boca.<br />— Mas a Lena disse que só daqui a dois dias é que sabe mesmo bem!<br />— Mesmo a tempo para o cesto da Páscoa<span style="color:#000000;"><span style="color:#cc0000;">[1]</span>! </span>— diz o pai.<br />Sebastião assente com a cabeça. É tarefa sua fazer e enfeitar o cesto da Páscoa para ser benzido na igreja. Sebastião já se sente contente. Vai pôr lá dentro pão e sal, manteiga e cerovias, ovos pintados e carne, e tapa tudo com a toalha bordada a ponto de cruz vermelho. Na asa prende dois narcisos.<br />Será que a sua amiga Ana, na cidade, também vai benzer o cesto? Esta noite ainda há-de telefonar-lhe.</p><p align="right"><br /><span style="font-size:85%;">Lene Mayer-Skumanz<br /><em>Anna und Sebastian<br /></em>Wien, Herder Verlag, 2003<br />Tradução e adaptação</span></p><p align="justify"><br /><br /><span style="color:#cc0000;">[1]</span> <span style="font-size:85%;">Em certos países, é tradição, na Quinta-Feira Santa, levar a benzer à igreja um cesto com a comida do dia de Páscoa.</span></p><br /></span><span style="LINE-HEIGHT: 160%"></span>Unknownnoreply@blogger.com0