28.7.07

Eu, Ming


Eu poderia ter nascido no Reino de Inglaterra, ter bonitos chapéus, e deixar-me conduzir numa carruagem puxada por dezoito cavalos.
Saudaria a multidão com um pequeno gesto da minha mão e sorriria sem razão, pensando na tarte de maçãs que me iriam servir para o chá.

Poderia também ter nascido Crocodilo e crescido na margem do Nilfertiti.
Teria devorado todos os turistas barrigudos com os seus calções curtos e chapéus, mais as suas máquinas fotográficas, mal eles pousassem um dedo do pé nas margens da minha estância turística.

Melhor ainda! Poderia ter sido um Emir Rico!
Teria dado a volta ao mundo, em Rolls-Royce num dos sentidos e de bicicleta banhada a ouro no outro.
No resto do tempo, teria contado o meu tesouro na erva do meu magnífico jardim mesmo no meio do deserto.

Poderia ter sido também uma Horrível Velha Feiticeira.
Teria transformado todas as princesinhas em mosquitos com a minha vassoura maléfica. E, troçando delas, metê-las-ia no meu celeiro cheio de aranhas.

Poderia até ter nascido Touro. Belo, forte e absolutamente sedutor.
Teria feito a corte a todas as vacas dos arredores e tê-las-ia levado em viagem de núpcias a uma China fictícia, umas a seguir às outras.

Teria podido tornar-me General-chefe com um quépi coberto de estrelas, com inúmeras condecorações, com mísseis sempre preparados a tempo, e canhões sempre prontos para o que desse e viesse.
E, durante as minhas férias, sonharia num tapete de bombas com um exército de soldadinhos de chumbo muito obedientes.

Por fim, poderia ter sido Imperador do Mundo.
Empoleirado no meu trono, com uma coroa tão alta como a Torre de Babel, tomaria conta de toda a Terra, desde os mais reles pulgões aos mais importantes do planeta, Todos os anos, eu convidaria a Rainha de Inglaterra, o Crocodilo, o Emir Rico, a Horrível Velha Feiticeira, o Touro, o General, etc., para uma grande festa dada no meu palácio.
Todos eles aplaudiriam cada palavra do meu discurso.

Mas eu sou Ming. Mais ninguém.
Vivo no centro da China, nas margens do lago Koukonor.
Todos os dias ponho o meu chapéu de bambu entrelaçado e umas calças bem largas. Todos os dias, antes do sol nascer, parto com a minha pequena Nam para a aldeia.
Ela pega com a sua mão pequenina na minha mão e saltita todo o caminho fazendo baloiçar as suas tranças.

Caminhamos os dois sem nos apressarmos muito. Eu entrego Nam na escola e vou vender os meus coscorões de gengibre ao longo da rua comercial da aldeia.
Aqui, toda a gente me conhece. Muitas vezes vou até casa de Liang, que tem uma loja de chás. Somos velhos amigos.

Todas as tardes, Nam e eu subimos o caminho que nos conduz a casa.
Ela conta-me o seu dia. E canta. E salta ao pé-coxinho.
O seu riso ziguezagueia na noite que cai suavemente.
É assim a nossa vida.
Todos os dias.
Mudam apenas a cor dos arrozais e o perfume das caixas de chá.

Esta manhã, quando íamos a caminho da escola, encontrámos um sapo quase azul!
Eu também podaria ter sido um Sapo quase Azul!
E pensei nas Rainhas de Inglaterra, nos Crocodilos, nos Emires Ricos, nas Feiticeiras, nos Touros, nos Generais, nos Imperadores do Mundo e nos Sapos quase Azuis.

Neste momento devem estar a dizer para si próprios: «Ah! Se eu tivesse podido nascer Ming! Seguraria a mãozinha de Nam bem fechada na minha e seria o avô mais feliz do mundo.»

Enquanto Nam dormia, peguei no seu caderno de escola. Escrevi no fundo da última página, discretamente:
P.S. (pequeno segredo): Nam, meu anjo, amo-te muito.

E assinei com letras muito pequenas:
eu, Ming.

Clotilde Bernos; Nathalie Novi
Eu, Ming
Porto, Ambar, 2007

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