28.7.07

Tom visita o avô

Que maus que os pais foram! Tão maus!
Tom, furioso, anda com passos pesados de um lado para o outro, como se os pais não existissem. Eles fazem de conta que não reparam no Tom furioso a marchar pela casa. Mas agora que ele fecha as portas com grande estrondo, começam a perder a paciência.
— O que é isso? – voltam os pais a ralhar quase ao mesmo tempo.
— Então achas que nós não gostamos tanto do avô como tu? – grita a mãe.
— Não, não gostam – responde Tom a gritar. — Se não, não o tinham mandado para aquele lar horroroso a cheirar a peixe!
— Ora – cede o pai. — Também não cheira a peixe todos os dias. O lar nem é assim tão mau.
— Mas o avô não quer lá estar! Ele não quer estar em nenhum lar! Foi ele próprio que mo disse!
— Tu ainda não entendes. – A voz da mãe soa normal outra vez. — Anda cá, querido – diz, estendendo os braços para Tom. — Tu ainda és muito pequeno para perceberes isto do avô.
Tom agora não é querido, e muito menos quando a mãe o diz. Por isso, não vai. Fica parado à entrada da porta, amuado, com a cara quente e corada, por onde lágrimas deslizam devagar.
A mãe não precisa de lhe explicar nada. Tom sabe muito bem que não se põe fora de casa uma pessoa de quem se gosta a sério.
Para perceber isto, não precisa de ser crescido.
Tom também não deitou fora o seu urso de pelúcia quando este deixou de ter pêlo. E Theo, o cão Baixote, também pôde ficar em casa quando ficou velho e se arrastava com dificuldade de sala para sala.
E o avô também ficou com a avó em casa quando ela, de um momento para o outro, perdeu o cabelo. E quando mais tarde deixou de poder andar, o avô começou a cuidar dela e dava-lhe até a comida na boca.
— A avó não vai para lar nenhum. Enquanto me aguentar em pé e puder andar, sou eu quem cuida dela. – dizia.
Depois a avó morreu, e morreu também um pedaço do avô. Em pouco tempo perdeu quase oito quilos.
Nunca mais prestou atenção ao que comia nem ao que vestia.
Preocupava-se com a sua mulher.
Mas não com ele.
Então os pais trouxeram-no para junto deles.
Para Tom, o avô foi, desde o princípio, um amigo adulto e sincero.
Alguém com quem ele podia rir e sonhar.
O avô contava histórias fantásticas enquanto fumava o seu cachimbo, que exalava um aroma doce e áspero. Como feno misturado com o cheiro de lareira. Tom voava para longe com o avô, para um país de aventuras em cima das nuvenzinhas de fumo.
O cachimbo foi um dos motivos que levou o avô a ter de se mudar. Os pais não suportavam o cheiro.
Também os incomodava que o avô desse de comer aos pombos no parapeito da janela.
— Sujam-nos tudo! – barafustava a mãe todas as manhãs.
O avô então raspava a sujidade com uma pequena pá de jardim.
Mas nunca conseguia agradar aos pais.
Se o avô estava a comer à mesa e não falava, diziam:
— Hoje está mudo.
Se falava, diziam:
— Hoje está senil.
— O cérebro já não funciona tão bem – explicaram os pais a Tom. — O teu avô já se esquece muito das coisas. Conta tudo três vezes.
— Por mim – respondeu Tom — pode contar tudo cem vezes. Eu escuto-o sempre.
Às vezes também arrotava um bocadinho. Os pais entreolhavam-se e repreendiam-no:
— Faça um esforço! Pelo menos em frente da criança!
Mas Tom defendia sempre o avô.
— E o que é que tem? Arrotar é engraçado – dizia. — Já os antigos cavaleiros o faziam.
E, em forma de protesto, soltava ele um arroto.
Tom acha que, quando se gosta de uma pessoa, também se deve aceitar os seus defeitos. Deve-se aceitá-la tal como é e não mandá-la simplesmente embora. Para um lar malcheiroso…
Só por duas vezes é que os pais foram com Tom visitar o lar e duas vezes num mês não é muito.
— Então vou lá hoje sozinho – declara Tom, porque os pais tornaram a arranjar uma desculpa para não irem visitar o avô.
— Nem pensar! – exclamou o pai, levantando-se de um salto. — Um lar de terceira idade não é um sítio próprio para crianças. Não perdeste lá nada, para lá teres de ir.
— Perdi, sim senhor! – exclamou Tom, batendo furiosamente com o pé no chão. — O meu avô!
— Mas hoje não podemos ir ao lar porque os Beckers vêm visitar-nos – intromete-se a mãe.
— Então, não deviam tê-los convidado.
Tom fecha com estrondo a porta do quarto. Fecha-se lá dentro à chave e ata a ponta de um fio grosso ao puxador da porta e a outra ponta à perna do armário, de forma que ninguém de fora consiga entrar. Em seguida, começa a pensar calmamente na melhor maneira de ir ver o avô. Que hoje, Domingo, vai ter com ele, já é ponto assente.
Tom tira do bolso do anoraque o mapa do metropolitano. Depois procura num mapa já velho a rua onde está o lar. A rua fica perto da periferia, onde estão muitos espaços verdes assinalados. Tom compara os nomes das estações do metro com os das ruas que conduzem ao lar. Tem de mudar três vezes.
“Não faz mal”, pensa. Já se orienta um bocadinho. Há um ano que vai sozinho para a escola.
Agora, já só precisa do passe e de algum dinheiro. Para uma emergência, como a mãe costuma dizer. Ao pensar em emergência, Tom sente uma pontada a atravessar-lhe a barriga.
Tira do armário o fato da primeira comunhão porque o faz parecer um pouco mais velho. Fica-lhe um pouco apertado nos ombros e o casaco termina mesmo abaixo do umbigo. As pernas das calças também estão demasiado curtas mas servem à justa. Agora, a gravata azul. Tom não sabe fazer o nó sozinho. Fica tão mal, que o melhor é ir sem gravata.
Rasga uma folha de papel do caderno da escola:
“Queridos Pais” – escreve a marcador. “Desculpem. Não queria magoar-vos. Mas também não quero magoar o avô. E hoje é a vez do avô. Tom.”
Soa um pouquinho diferente do que queria dizer, mas Tom está demasiado excitado para pensar em qualquer coisa melhor. Pousa a folha em cima da coberta da cama e alisa-a, contra o que é seu hábito, para que os pais consigam ver bem a mensagem.
Quando os Beckers tocam à campainha, cumprimenta-os delicadamente, tal como os pais querem que faça. Só quando se embrenham na conversa com os convidados é que Tom fecha, sem barulho, a porta da rua. Galga pelas escadas abaixo, como se a cadela dos vizinhos, uma Doge, com cara de porco, fosse a correr atrás dele. Sobe depressa a rua, vira duas vezes à direita. Na estação do metro, desce os degraus aos tropeções. As escadas rolantes parecem-lhe hoje muito lentas.
O metro aproxima-se.
As luzes amarelas brilham fantasmagoricamente no túnel, saem da escuridão e correm depressa para a plataforma.
“Eu vou ver o meu avô”, pensa Tom com muita força. Ao pensar isto, sente-se mais calmo.
Entra para o metro. O coração ainda está a bater-lhe no pescoço, de tanto correr. Sua de tal maneira por baixo do fato apertado que a camisa está colada às costas.
Agora tem de prestar atenção. De prestar muita atenção onde deve sair e trocar de linha.
A viagem dura ao todo uma hora. A Tom parece muito mais longa do que das outras vezes que foi com os pais ao lar. “O avô vai ficar contente”, pensa Tom.
Será que o avô vai ficar mesmo contente?
O avô vai compreender por que é que ele fugiu.
O avô compreende tudo.
Reconhece à distância o edifício alto e amarelo. Por fora, parece mais simpático do que por dentro. Ao lado do lar, há uma casinha pequena e baixa com uma placa cor-de-rosa por cima da porta, onde está escrito “Doces e Bombons”.
Tom compra para o avô uma tablete de chocolate amargo. Da marca que ele tanto gosta.
— Podia embrulhar a tablete como prenda?
A vendedora embrulha a tablete em papel de seda branco e enfeita-a com uma fita encaracolada.
— Obrigado – diz Tom, ficando outra vez com o coração aos saltos. Nunca tinha comprado uma prenda para ninguém. Só gelados e gomas para si.
Hoje está mesmo muito crescido!
O bater do coração torna-se mais forte à medida que Tom se aproxima da portaria do lar.
— Faz favor… faz favor, eu gostava de ir ter com o meu avô – diz, através da abertura do vidro, pondo-se muito direito para parecer um pouco maior. O porteiro vai acabar por lhe perguntar que idade tem e, se calhar, crianças tão pequenas não podem mesmo ir sozinhas fazer visitas.
— Então tens de me dizer como se chama o teu avô – diz amigavelmente o homem atrás da janela. — Temos cá, pelo menos, sessenta avôs!
— Rudolfo Dolezal – diz Tom com clareza.
O porteiro folheia um livro grosso escrito à mão, segue com o dedo ao longo da comprida lista.
— Quarto 204D! – E a seguir:
— Mas que idade é que tu tens?
Tom engole em seco. A saliva está-lhe colada na garganta. Não pode inventar tantos anos como os que precisaria.
— Pergunto por causa do elevador – diz o porteiro. — É que só as crianças com mais de doze anos podem andar sozinhas.
— Eu vou a pé de qualquer maneira – diz Tom aliviado. E corre em direcção à escada.
— Quarto andar! – grita-lhe ainda o porteiro.
“Tantas portas!” pensa Tom. Lê em voz alta os números que estão por cima:
— 196C, 178C, … É aqui!
Finalmente aparece a letra D. Tom murmura para si os números que estão à frente:
— 180D… 200D… 204D!
Tom bate à porta, baixinho. Depois, mais alto. E ainda mais alto.
Do outro lado, o silêncio continua.
Com cuidado, tenta abrir a porta, mas está fechada à chave. O avô não está no quarto.
Tom respira fundo. E agora, o que é que vai fazer? Nesta enorme casa desconhecida, com tantos corredores e tantos quartos?
Vai procurar pela casa toda, revistar cada sala à procura do avô. E se ele foi passear? Então, já deve estar a chegar. No lar, as pessoas jantam às seis horas. E já são cinco.
Tom desce à portaria a correr.
— Onde posso encontrar o meu avô? Ele não está no quarto.
— Vê na sala de leitura. Ou na sala da televisão. Se calhar está lá sentado!
Um rapaz com uma bata e calças brancas vem pelo corredor na direcção de Tom. É um enfermeiro e parece simpático.
— Desculpe, poderia dizer-me onde posso encontrar o Sr. Rudolfo Dolezal? É o meu avô.
— Dolezal…? – O enfermeiro leva a mão à cabeça e pensa.
— Certo! Dolezal Rudolfo! Levei-o ontem à noite para baixo, para a secção dos doentes. Está na enfermaria, rés-do-chão à esquerda.
Tom sente-se gelar. Como se tivesse caído despido num buraco na neve. Volta a si lentamente e pergunta:
— Mas o meu avô não morreu, pois não?
— Claro que não – acalma-o o rapaz, sorrindo. — Se não, não estaria na enfermaria. Anda, eu levo-te até ele. Ontem a meio da noite, o teu avô teve uma crise de vesícula bastante má – explica-lhe o enfermeiro pelo caminho. — Por isso é melhor que esteja sob vigilância médica até que melhore.
Tom conhece as crises de vesícula. O avô vomita imenso e tem muitas dores. Uma vez, ficou com a cara de um cinzento escuro e os lábios meios azuis. Tom decide não mostrar ao avô cinzento escuro o aspecto horrível que tem.
Ali está ele. Na última cama junto da parede. Muito pálido. Não cinzento. Os lábios estão acastanhados e não azuis.
O avô tem quase a cara de sempre.
Assustado, senta-se de um salto.
— Olha! Como é que vieste aqui parar, Tom? Onde é que estão os teus pais? Mas eu não contei nada a ninguém da minha crise!
As frases saltam-lhe umas atrás das outras.
— A nós não nos aconteceu nada, avô – Tom dá-lhe um grande beijo. Que fria que a cara está hoje! — Mas o que é que se passa contigo? Já estás bom?
E antes que o avô pudesse responder, Tom continua:
— Eu senti que estavas doente. Senti mesmo a sério. No preciso momento em que me sentei na tua cadeira verde antiga. É! Lá mesmo! E aqui estou eu!
Tom pensara nesta pequena mentira de emergência para justificar o motivo da fuga, caso de o seu amor pelo avô não fosse motivo suficiente. Quando alguém está doente, deve-se sempre ir visitá-lo.
O avô suspira. Puxa-lhe a cabeça para si e aperta-a contra o peito.
— Menino, menino – diz baixinho. — Tu fugiste de casa!
Tom não diz nada.
— Já telefonaste ao menos aos teus pais a dizer que chegaste bem?
— Ainda não telefonei – responde Tom baixinho. — Mas deixei-lhes um bilhete em cima da cama e está lá tudo explicado.
— Mesmo assim tens de lhes dizer que estás aqui. Que está tudo bem contigo. Mas – acrescenta o avô – nem uma palavra sobre a minha crise de vesícula. Nem uma palavra! Prometes?
Tom acena com a cabeça.
Deixa-se ficar mais um pouco sentado na cama.
— Queres voltar para nossa casa quando estiveres bom?
— Não, meu filho. Não… – o avô abana a cabeça.
— Mas aqui também não gostas de estar. É verdade?
— Aqui também não – diz o avô. — Mas agora estou aqui. Tenho de me conformar. Em qualquer lado se pode ter um pouco de alegria. Em qualquer parte do mundo! Basta querer.
— E tu queres? – pergunta Tom.
— Se quero! – diz o avô a rir. — Nem consigo lembrar-me quando foi a última vez que tive uma alegria.
— Toma – diz Tom dando-lhe a tablete de chocolate meia amolecida. — Para teres outra alegria.
— Obrigado! – O avô pega no chocolate meio derretido e desembrulha-o com muito cuidado. Tira o papel de prata colado ao chocolate muito devagar, e põe-no na mesinha de cabeceira.
O avô não costuma ser tão vagaroso Tom vê claramente que ele está a pensar.
— Não foi lá muito correcto o que tu fizeste – diz, de repente. — Penso que sabes isso.
Tom acena com a cabeça.
— Mas mesmo assim foi bonito – e puxa Tom novamente para si num abraço tão apertado que ele quase nem consegue respirar.



Evelyne Stein-Fischer
13 Geschichten vom Liebhaben
München, DTV Junior, 1990
Tradução e adaptação

Sem comentários: