28.7.07

O meu paizinho de nada


Durante muito tempo, acreditei que não tinha pai. Era o que os outros diziam:
— Tu nem sequer tens pai.
Não valia a pena dizerem-mo, eu bem via que não.
Não tinha pai para me encher a bola esvaziada, não tinha pai para me vir buscar à escola ao sábado, não tinha pai para meter medo a quem se metesse comigo, não tinha pai para ver como eu era campeão de corrida, não tinha pai para me levar às cavalitas quando eu estava cansadíssimo.
Então, um dia, perguntei à minha mãe:
— Porque é que eu nunca tive pai?
— Tiveste um — disse-me a mãe. — Tiveste um pai como toda a gente; teve de ser... Chamava-se Luís e parecia-se com… sei lá…. Olha, com um bago seco, pronto. Mas deixa-me em paz… Prefiro não falar disso.
— Mas porque é que agora já não tenho? Morreu?
— Para mim — disse a minha mãe — é como se estivesse morto e enterrado. Deixa-me em paz, já te disse.
Quer dizer que eu tinha tido um pai, como toda a gente. Mas não vou tê-lo mais. Morto e enterrado. Que pena. Se calhar foi para a guerra e morreu lá. Guerras que fazem morrer os papás são coisas que acontecem todos os dias. Perguntei à minha mãe se tinha uma fotografia dele e ela respondeu.
— Isso ia pôr-me mal-disposta.
Por isso não voltei a perguntar-lhe mais nada.
Na escola, contei que o meu pai estava morto e enterrado. Os outros não acreditaram:
— Não é verdade. Quem morre são os avós, não são os pais. Os pais nunca morrem.
— E morrem! — disse eu. — Morrem na guerra.
— Ah! Ah! Ah! Na França nem sequer há guerra — disseram eles. — Isso da guerra era no tempo dos avós, portanto estás a ver! Não pode ser, o teu pai não pode ter morrido na guerra. Ou, então, o teu pai morreu quando era pequeno!
— Foi isso — disse eu, para me deixarem em paz. — Morreu quando éramos os dois pequenos.
Mas, mesmo assim, enervava-me um bocado não saber ao certo. Perguntei então à minha avó, que toma conta de mim quando a mãe não pode.
— O pai morreu quando era pequeno?
A minha avó até caiu para trás, de tanto rir.
— Tu tens cada uma!
E chamou o avô para lhe contar.
— Sabes a última? — perguntou ela a rir. — O miúdo perguntou-me: O meu pai morreu quando era pequeno?
O avô não se riu. Ele, também, nunca se ri. Encolheu os ombros e mais nada. Aproveitou para beber um copo, já que o tinham chamado à cozinha, e voltou ao trabalho.
A avó disse-me:
— Não se sabe se morreu, mas, para mim, é como se tivesse…
— A mãe também diz que é como se tivesse…
— É o melhor que ela faz — replicou a avó. — O teu pai era um senhor pequenino, um maltrapilho, um Zé-Ninguém, menos do que nada, pronto. Desapareceu e ainda bem!
Foi o que a avó disse.
E, depois, não disse mais nada, porque ela comigo só diz blá, blá, blá, embora muitas vezes eu até a faça rir.
Sentia-me muito contente por ter tido um pai, mesmo que tenha sido um senhor muito pequenino, um homem de nada. E depois também fiquei contente por saber que não tinha morrido em pequeno, porque isso teria sido ainda mais injusto, acho eu.
E foi assim que me pus a pensar nele, à noite, no escuro, e pouco a pouco, comecei a pensar nele cada vez mais. E todas as noites, antes de adormecer, perguntava-lhe coisas em pensamento: como fazer para não ter pesadelos e proteger-me dos vampiros que chupam sobretudo o sangue das raparigas, mas pode às vezes algum confundir-me… nunca se sabe…
Eu não falava a ninguém do meu paizinho de nada. Porque é que havia de fazê-lo? Deitava-me e, assim que estava no escuro, pensava em mim, e depois não pensava em nada, o que me levava sempre a pensar nele. Era assim que as coisas se passavam.
Mas uma noite não foi assim.
Deitei-me, primeiro pensei em mim, como de costume, e quando ia a pensar em nada, ele apareceu. Como viera até ali, não sei. Talvez tenha caído ali, em cima da cama, mesmo ao meu lado. Fiquei deveras surpreendido, mas não tive medo. Porque é que havia de ter medo de um homenzinho de nada? Não acendi a luz. Não fosse ele desaparecer, como acontece com os fantasmas…
De qualquer modo, com o luar, via-se super-bem. Eu olhava para ele… A minha avó não estava enganada… Era, na verdade, um homenzinho que não valia nada, um miserável, menos que nada. Além disso, não dizia nada. Nem sequer olhava para mim. Olhava para o tecto como se quisesse saber o que estava a fazer ali, ou, então, observava as moscas, sei lá. Eu até sustinha a respiração. Era tão pequeno… Se eu respirasse muito forte, podia até levantar voo… Ele ali estava, com o olhar fixo no tecto, assim, sem se mexer, sem dizer nada, como se estivesse morto…, mas não estava nada morto. E os olhos dele brilhavam no escuro. Aproximei-me o mais que pude. Tanto, que os seus cabelos roçavam-me na cara. Tão perto, que senti que aquele maltrapilho tinha os pés gelados.
Então disse para mim que lhos ia aquecer. E pus os dois pezinhos de nada nas minhas mãos. É melhor assim, não é, paizinho? dizia eu na minha cabeça, porque, a ele, eu não sabia o que dizer…
Já devia ser um pé-descalço há muito, muito tempo, o meu paizinho de nada, porque eu não conseguia dar calor suficiente aos seus pequenos pés.
E eis que as suas mãozinhas se puseram a tremer ao lado do corpo, como se fosse uma espécie de pássaro ferido com as asas a palpitar de frio, de medo ou de outra coisa, mas não sei de quê.
Então, finalmente, apertei-o contra mim. Fiz asneira. Teve que ser com muito cuidado para não assustar o meu paizinho de nada. Ficou ali apoiado contra o meu coração que batia com muita força, deitado a olhar para o tecto, sempre; mas agora via que ele estava a sorrir, e eu dizia para comigo “Ora esta! Se a minha mãe visse este sorriso!”
O seu sorriso, adivinhem lá, era exactamente o meu! Aquele que a mãe gosta tanto de me ver fazer nas fotografias.
— Sorri, Luís — está sempre ela a dizer-me quando me tira uma fotografia.
Porque é que ela quer que eu arreganhe assim a beiça, se não há nada de engraçado? Isso é um mistério!
Mas ao ver o sorriso do meu paizinho de nada, começo a sorrir sem que ninguém mo peça, e ali ficamos como dois palermas, a sorrir e a olhar para o tecto.
Talvez as moscas se perguntem porque é que nós, o meu pai e eu, nos divertimos tanto. Só que nós nada temos a ver com tectos, moscas e aparelhos fotográficos ou qualquer outra coisa.
Eu e o meu paizinho de nada rimos sem motivo e quanto mais digo que não há motivo para rir, mais eu e o pai nos escangalhamos a rir, mas silenciosamente, para não acordar ninguém. Até choramos os dois um bocadinho!
Ah! Que bem que nos fez, rir assim, por nada!
O meu paizinho já não tem mais frio. Os pés estão quentinhos e as pequenas mãos abanam no escuro. Pergunto-me o que estará ele a fazer. Sentou-se em cima do meu peito e parece estar à procura de qualquer coisa. Vasculha os bolsos, vira-os do avesso. Não há nada lá dentro, nem um lenço sequer, mas, de qualquer maneira, os pais não choram… Apalpa-se por todo o lado, como se lhe tivessem roubado a carteira. Mas o que é que está ele ali a remexer?
Desce do meu peito, levanta a beira do lençol, a ponta da almofada.
Então eu digo-lhe baixinho:
— O que é que perdeste?
Mas ele só me fez “Chiu”, pondo o dedo em cima dos lábios.
Sinto que estou com sono, com tanto sono que até estou com medo. Não quero dormir, mas sinto que já estou a começar! Já penso em mim, depois em nada e nele, no meu paizinho de nada; digo a mim próprio que tenho de arranjar peúgas, calçado, para que não tenha mais frio nos pés…
Começo a pensar nele como se já não estivesse ali! Sinto-o a afastar-se, a ir embora, descalço, tal como veio… Quero impedi-lo de partir!
— Fica, fica comigo… — sussurro.
Ele murmura ao meu ouvido qualquer coisa que não entendo, mas na bochecha, e isto é mesmo certo, não posso estar enganado, sinto qualquer coisa tão doce, tão leve, um beijinho de nada…
Quando me levanto, sinto-me um bocadinho enjoado. Digo para mim mesmo que talvez tenha sonhado e isso ainda me faz sentir mais enjoado.
Esta manhã, a mãe disse-me que tenho má cara, que pareço um cadáver, disse ela, e manda-me ir lavar-me. Olho para o espelho e então vejo… o meu paizinho de nada deixou-me qualquer coisa…
Quando sorrio para o espelho, agora, tenho uma pequena cova… Faz um buraquinho na minha bochecha, exactamente ali, onde ele me beijou…
Um buraquinho de nada…


Jo Hoestlandt
Mon petit papa de rien du tout
Arles, Actes Sud Junior, 2000
Tradução e adaptação

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